Diante da porta da caixa-forte

O que nos separa do mundo (no caso, contado pelos media) é um gesto, uma escolha. Diante do "The Vault" da revista Time, eis-nos por metonímia diante da porta do jornalismo de qualidade, daquele que tem um valor calculável para a sociedade.

Em 1923, num dia três de março como este em que escrevo, saía o primeiro número da revista Time, 32 páginas que inauguravam o percurso de um dos maiores títulos do jornalismo norte-americano, um modelo informativo seguido em todo o mundo. Naquele sábado, a nova publicação trazia na capa Joseph G. Cannon, à data presidente da Câmara dos Representantes, e ainda não tinha o contorno vermelho que a caracteriza. Todavia, como se lê no site da Time, era já possível reconhecer o que continua a oferecer hoje: “um olhar sobre as notícias da semana, a partir de um ponto de vista sério sobre a atualidade nacional, passando por páginas de crítica de artes, para terminar num apanhado divertido de curiosidades.”

Para ler o número integral é clicar no link, avisa-nos a frase a vermelho que antecede a apresentação deste número histórico. No final do texto, de novo: para aceder ao número basta clicar aqui. E clicamos, pois claro.

Fica-se à porta, porém. Chegamos a The Vault, a caixa-forte, o arquivo digital da Time. É preciso pagar para entrar.

Chamar The Vault ao arquivo digital da revista é um golpe de génio. Ao mesmo tempo que nos convida a entrar num lugar exclusivo, reservado a quem tem a chave, apresenta o seu conteúdo desde logo como um tesouro, destacando assim o valor do que está “lá dentro”. Todavia, esta estratégia de marketing é também uma oportunidade para nos pôr a pensar sobre o jornalismo e a nossa relação com os media. Pagar para entrar? Quanto vale uma notícia, um jornal?

Como outros títulos históricos da imprensa norte-americana ou europeia, a revista Time é repositório, testemunha e de alguma forma agente dos tempos, e o seu valor, apesar de ser o de um tesouro, não é de “uma riqueza incalculável”. Pelo contrário: a riqueza do jornalismo livre e de qualidade é absolutamente calculável e permite medir a vitalidade das nossas democracias.

Quase um século depois da fundação da Time, o jornalismo ocidental vive o mesmo sobressalto de identidade que as sociedades de que faz parte. Melhor, diria que vive sobretudo um sobressalto autorreflexivo porquanto se sente posto em causa tanto desde “dentro” – pelo reequacionar do espaço-tempo-conteúdo-função mediáticos –, como por essa mesma sociedade.

Entre os discursos pessimistas – realistas, talvez – sobre o estado de saúde do jornalismo contemporâneo, e a confiança – ativa, pois claro – nos mecanismos de melhoria contínua do espaço público de que a imprensa entendida em sentido amplo é um dos dínamos, escolho a confiança. Mas como apontei antes, ela tem de ser performativa, tem de incluir a ação.

Na relação com os media, é preciso ser criterioso na escolha dos meios de comunicação que lemos, ouvimos e vemos; é preciso procurar a informação na informação e não no entretenimento, contrastar ângulos lendo diferentes jornais, por exemplo, ler mais do que os títulos das peças, é preciso ser exigente connosco e com o jornalismo.

As notícias são-nos dadas, mas temos de saber recebê-las: de olhos abertos, de pensamento vivo, de espírito crítico, porque o jornalismo é absolutamente fundamental para a democracia, denuncia injustiças sociais e humanas, dá voz a histórias exemplares, aproxima da nossa realidade contextos (afinal não tão) distantes, relata acontecimentos de outra forma invisíveis, proporciona o contraditório do discurso político, etc., etc., etc.

Para a vitalidade da democracia, contudo, é preciso também que haja cidadãos ativos, comprometidos com a empreitada sem fim de tornar o mundo melhor, mais justo, mais equilibrado para todos. É um compromisso de que os cristãos não podem abdicar, que devem assumir sem medo. Não se trata de impor a nossa visão do mundo, pensando que só há uma maneira de encontrar essa justiça humana que tantos almejamos, mas de contribuir generosamente para o debate público, com coragem para estar ao lado dos que discordam de nós, sem receio de encontrar nos que pensam de forma diferente a mesma procura do bem comum, centrado na valorização da pessoa e das suas redes, na procura da felicidade individual e comum, na redução das desigualdades, reconhecendo a riqueza do diálogo plural para o progresso das sociedades.

Referi-me anteriormente a uma confiança performativa porque a confiança (em qualquer aspeto da vida) não convida à inércia. Ela exige, antes, um duplo movimento: como consumidores de informação devemos ser ativos e, ao mesmo tempo, a receção das notícias deve levar-nos a agir como cidadãos. Na relação com os media, é preciso ser criterioso na escolha dos meios de comunicação que lemos, ouvimos e vemos; é preciso procurar a informação na informação e não no entretenimento, contrastar ângulos lendo diferentes jornais, por exemplo, ler mais do que os títulos das peças, é preciso ser exigente connosco e com o jornalismo.

Trata-se de uma nova disciplina de cidadania, a literacia mediática.

Desde os nossos lugares privilegiados, nas várias circunstâncias de espaço e tempo que habitamos, da família à comunidade, não podemos demitir-nos da responsabilidade individual e não podemos desinteressar-nos do mundo real. Um mundo que está para lá de mim, mas de que eu devo fazer parte e não mantê-lo à parte.

O que nos separa do mundo (no caso, contado pelos media) é um gesto, uma escolha. Diante do The Vault da revista Time, eis-nos por metonímia diante da porta do jornalismo de qualidade, daquele que tem um valor calculável para a sociedade democrática, e que não é gratuito. Esse gesto, essa escolha, definirá o papel que queremos desempenhar no mundo e porventura determinará também o futuro do mundo em que vivemos e em que somos chamados a ser cristãos.

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.