Como evitar um desastre climático à luz da Laudato Si?

Isto pressupõe uma conversão ecológica que se traduz numa atitude interior caracterizada pela sobriedade e humildade e por uma revalorização daquilo que é pequeno.

Chamou-me a atenção a recente publicação do livro de Bill Gates, Como evitar um desastre climático, As soluções que temos e as inovações necessárias. Quer a primeira edição inglesa quer a portuguesa são de fevereiro de 2021. Pareceu-me pertinente confrontar a perspetiva deste livro com a da carta encíclica do Papa Francisco, Louvado sejas, Sobre o cuidado da casa comum, de maio de 2015.

O aquecimento global por efeito estufa é uma ameaça grave, sem precedentes na história, que paira sobre toda a humanidade, bomba relógio que já nos vai explodindo nas mãos, constituindo um verdadeiro pesadelo. Problema ambiental e social, de resolução extremamente complexa. O futuro da humanidade joga-se neste nó górdio, que nos apela a uma conversão radical. Mas será que se trata de resolver apenas mais um problema técnico, neste caso o mega problema relativo às mudanças climáticas, ou o problema é ainda mais fundo, e prende-se com a perspetiva que temos e queremos para o ser humano? O que não é contemplado, extravasando o âmbito do livro de Bill Gates? Em que medida as abordagens de Bill Gates e do Papa são complementares?

O futuro da humanidade joga-se neste nó górdio, que nos apela a uma conversão radical. Mas será que se trata de resolver apenas mais um problema técnico, neste caso o mega problema relativo às mudanças climáticas, ou o problema é ainda mais fundo, e prende-se com a perspetiva que temos e queremos para o ser humano? O que não é contemplado, extravasando o âmbito do livro de B. Gates?

Começo por recordar passos importantes no campo da sensibilização às alterações climáticas, dados sob a égide da ONU: 1. Liderada pela Senhora G. H. Brundtland, a Comissão Mundial do Ambiente e do Desenvolvimento produziu o relatório O nosso futuro comum, em 1987. O relatório conclui que a resolução dos problemas quer do ambiente quer do desenvolvimento requerem uma abordagem conjunta, ao nível de todo o globo. Dito de outro modo: se for cada um por si, não temos futuro. Coincidindo com este relatório, a Doutrina Social da Igreja passa a ter uma perspetiva integrada entre o social e o ambiente, isto é, entre justiça e ecologia.

2. O Painel Intergovernamental sobre Alterações Climáticas (IPCC) produziu vários relatórios entre 1990 e 2014, tendo sido distinguido com o Prémio Nobel da Paz em 2007. Conclui que para evitar um cenário catastrófico a nível mundial, urge limitar o aquecimento global em 1,5°C, para o qual é essencial atingir uma neutralidade carbónica até 2050. Isto significa que as emissões para a atmosfera de gases efeito estufa (dióxido carbónico, óxido nitroso e metano) terão que ser nulas, ou, mais corretamente, o total de emissões e captura da atmosfera terá que ser nulo.

3. O Acordo de Paris, de dezembro de 2015, rege medidas de redução de emissão de gases estufa, a fim de conter o aquecimento global abaixo de 1,5ºC, fruto duma neutralidade carbónica a alcançar em 2050. Este tratado é assinado por 195 países. Não será por acaso que a encíclica Louvado Sejas se tenha antecipado alguns meses ao Tratado de Paris. Progressivamente, a Igreja faz-se presente neste debate prioritário e vital.

O livro de Bill Gates apresenta uma possível estratégia para alcançar este objetivo. Considera o encadeamento de uma série de meios parcelares em vista do objetivo final. Inventaria as cinco fontes emissoras de gazes efeito estufa: produção de eletricidade, indústria, agricultura, transportes e climatização. Tem em conta as inovações tecnológicas já existentes, bem como aquelas que haverá que inventar e desenvolver. Refere uma série de hábitos que cidadãos, consumidores, trabalhadores/empregadores terão de mudar. Considera que este desafio exige uma ação concertada, que envolve tecnologia, políticas e mercados. Dedica uma atenção particular aos povos mais pobres, pois, por um lado, são os mais vulneráveis e, por outro, os países ricos são os principais responsáveis desta crise.

A carta Louvado Sejas (LS) constitui a primeira encíclica inteiramente da autoria do Papa Francisco. O título retoma o “Cântico das Criaturas”, de S. Francisco de Assis. Louvado Sejas: presta atenção a este hino de louvor, que toda a criação entoa incessantemente a Deus e, sobretudo, junta-te a este coro cósmico! Contudo, a encíclica teria tido como inspiração inicial o diálogo com o Patriarca Ortodoxo Bartolomeu (LS 7-9, Fratelli Tutti 5).

A perspetiva da ecologia integral assenta num diálogo entre vários interlocutores: da política à economia, das grandes religiões às ciências.

Se a ecologia é a ciência da casa do homem, interrogamo-nos acerca dos limites da casa. Daí uma ecologia integral, intuição alargada de casa, onde tudo se encontra interligado. De facto, a encíclica apresenta uma perspetiva poliédrica da ecologia, nas suas múltiplas vertentes: ambiental, económica e social; mas também cultural e, ainda, ecologia da vida quotidiana. Mas pretende também ser uma casa onde ninguém é excluído (princípio do bem comum) e disponível para acolher aqueles que ainda hão de vir a nascer (justiça intergeracional). Trata-se de uma ecologia integral, procurando traduzir a estreita ligação dos mais variados âmbitos, que constituem o suporte vital existencial da humanidade.

A perspetiva da ecologia integral assenta num diálogo entre vários interlocutores: da política à economia, das grandes religiões às ciências. Para fomentar esta abordagem, refira-se o encontro “A Economia de Francisco”, a decorrer em Assis, de 26-28 de março de 2021, congregando o Papa com cerca de 2.000 jovens economistas.

Isto pressupõe uma conversão ecológica, que se traduz numa atitude interior caracterizada pela sobriedade e humildade (LS 224), e por uma revalorização daquilo que é pequeno (LS 230-231). Tem na base um triplo ato de fé, esperança e amor

Isto pressupõe uma conversão ecológica, que se traduz numa atitude interior caracterizada pela sobriedade e humildade (LS 224), e por uma revalorização daquilo que é pequeno (LS 230-231). Tem na base um triplo ato de fé, esperança e amor num Deus que age na história para libertar o ser humano daquilo que o impede de viver plenamente como filho de Deus (LS 13, 74). Tem também na base um ato fé no ser humano, de modo a possibilitar uma maior solidariedade entre todos ou, então, uma verdadeira fraternidade universal, como desenvolverá o Papa na sua última encíclica Fratelli Tutti.

Este tempo de pandemia torna ainda mais evidente a urgência da fraternidade global, e exige um novo tipo de relações entre os povos. Tem permitido intensificar e reforçar os laços de pertença à única família humana. É que a covid-19 é também um inimigo que ataca todos os povos sem fazer aceção. É verdade que nem todos os povos se encontram igualmente apetrechados para lhe fazer frente. Por isso mesmo, trata-se dum novo desafio, em que urge congregar esforços e despertar para uma atitude mais solidária. É como se o mundo se tivesse contraído e estivéssemos mais conscientes da nossa pequenez, condição sine qua non para estabelecer relações mais profundas. Apesar do sofrimento causado, a presente pandemia tem-nos aproximado como irmãos. Nesta conjuntura difícil que atravessamos, somos convidados a acolher a hora presente como prenha de sentido. Trata-se de uma oportunidade, um dom muito especial, a acolher como verdadeira Páscoa/passagem, em que a humanidade como um todo é convidada a dar um salto de qualidade.

Fotografia de Kelly Sikkema – Unsplash

 

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.