Aproxima-se o Dia Mundial dos Pobres, que este ano se celebra pela sétima vez depois de ter sido instituído pelo Papa Francisco em 2016. Na mensagem que escreveu a propósito deste dia, o Papa refere logo no início da sua carta que nos empenhamos “todos os dias no acolhimento dos pobres, mas não basta; a pobreza permeia as nossas cidades como um rio que engrossa sempre mais até extravasar; e parece submergir-nos, pois o grito dos irmãos e irmãs que pedem ajuda, apoio e solidariedade ergue-se cada vez mais forte”. É uma mensagem que deveria ser de leitura obrigatória, por tudo o que diz sobre a caridade e a misericórdia que são devidos especialmente aos mais fracos.
Talvez uma das afirmações mais fortes que o Santo Padre faz nesta mensagem seja a de dizer que “Vivemos um momento histórico que não favorece a atenção aos mais pobres”. Por outras palavras: os pobres são fáceis de silenciar. A realidade dos pobres, porque muitas vezes não está diretamente à frente dos nossos olhos por causa dos sítios em que vivemos, ou do tipo de vida que temos, é-nos frequentemente invisível. Isso, porém, é uma falha que nos deveria doer e obrigar a pôr em marcha. A pobreza não pode deixar de nos tocar. Não as estatísticas da pobreza, que como o Papa diz podem ser formas enganadoras de pensar nos pobres, mas a própria realidade da pobreza. Por essa razão, na linha de uma Igreja que anuncia e denuncia [§81 Compêndio Doutrina Social da Igreja], que interpreta a realidade onde os crentes se movem e a orienta [§72 CDSI], elenco aqui três realidades que não podem ser invisíveis aos crentes e pelas quais todos os fiéis cristãos se deveriam bater, na linha daquilo que é a mensagem dirigida pelo Papa Francisco para o Dia Mundial dos Pobres.
1. Fiscalizar o trabalho é uma forma de combater a pobreza
A ideia de que todo o trabalho é bom trabalho faz parte dos credos ideológicos de várias famílias políticas. Porém, sabemos que isso não é verdade. A situação descoberta em 2021 em Odemira mostra o quanto isso não é verdade: o trabalho escravo é uma realidade não só no mundo, como também no nosso país. E seria muito surpreendente se esse trabalho escravo estivesse apenas restrito a plantações agrícolas fora das grandes cidades do nosso país, estando excluído da vida urbana e da economia do terceiro sector.
A este respeito, apostar numa fiscalização estrita das condições de trabalho daqueles que potencialmente vivem vidas de maior precariedade ou de maior probabilidade de exploração é uma forma de combater a pobreza e o abuso dos indefesos. Correm boatos em Lisboa de haver motoristas de TVDE a fazer horários absolutamente inumanos para poderem cumprir com as obrigações com que se comprometeram perante os donos das viaturas que conduzem. Haver uma maior fiscalização dessas empresas é uma forma de defender aqueles que conduzem precariamente, sujeitos a condições de grande dificuldade. A mesma coisa acontece em Lisboa no que respeita a lojas de conveniência, de souvenirs, ou de pequena marroquinaria. O centro da cidade está cheio de lojas de souvenirs e de pequenos produtos, frequentemente vazias, em relação às quais é difícil de acreditar que gerem receita suficiente para que possam cumprir com as rendas que os senhorios certamente esperarão. Perceber as receitas destas lojas, saber quem é que estas lojas empregam, como pagam aos seus empregados, que direitos lhes conferem, é dever de uma sociedade que não admite a escravatura urbana ou o abuso dos mais fracos. A questão não se prende com cidadania ou país de origem: prende-se antes com a necessidade de garantir que aqueles que trabalham no nosso país, e têm maior probabilidade de estar a ser sujeitos a exploração e violência laboral, não o estejam a ser, mas antes a ser protegidos e defendidos para que possam viver dignamente a totalidade das suas vidas. No que diz respeito à pobreza urbana, as condições de trabalho são algo em que a Igreja deveria pressionar agências como a ASAE a criar melhores medidas de fiscalização e proteção dos trabalhadores. Não o fazer é manter invisível a pobreza que está diante de nós.
A questão não se prende com cidadania ou país de origem: prende-se antes com a necessidade de garantir que aqueles que trabalham no nosso país, e têm maior probabilidade de estar a ser sujeitos a exploração e violência laboral não o estejam a ser, mas antes a ser protegidos e defendidos para que possam viver dignamente a totalidade das suas vidas.
2.Lutar pelo salário médio importa mais do que lutar pelo salário mínimo
Parte do nosso hemisfério parlamentar vive obcecado com a luta pela subida do salário mínimo. A maior parte dos sindicatos do país acompanha esta obsessão. Há ocasiões e oportunidade para que esta reivindicação seja legítima e válida. Contudo, o verdadeiro progresso dos povos e a verdadeira luta contra a pobreza não se joga na subida do salário mínimo, mas sim na subida do salário médio nacional. O salário mínimo é um instrumento que deveria servir para regular as condições de entrada no mercado de trabalho por parte de trabalhadores que, por ausência de experiência ou de especiais qualificações, precisassem de uma fase inicial de teste antes de serem verdadeiramente admitidos à profissão. Lutar apenas pela subida do salário mínimo, com o risco de perder o horizonte do salário médio, significa que a prazo o salário mínimo nacional pode subir e o salário médio descer – o que significa que a generalidade do país ficará pior do que está, sem que haja propriamente grande horizonte de melhoria e crescimento para quem está mais abaixo.
O verdadeiro progresso dos povos e a verdadeira luta contra a pobreza não se joga na subida do salário mínimo, mas sim na subida do salário médio nacional.
Lutar pela subida do salário médio nas empresas, fábricas e corporações nacionais é também uma forma de combater a pobreza. A subida do salário mínimo não garante a mais famílias a melhoria das suas condições de vida, a menos que esteja no horizonte passar do salário mínimo a um salário mais alto do que o mínimo. As famílias, em média, terem melhores remunerações, é um dado mais interessante do que o de as famílias, no mínimo, no pior de todos os cenários, na situação mais extrema do que é possível remunerar-se, terem remunerações menos más. Esta deveria ser a bandeira de todos aqueles que olham cristãmente para a sociedade, sejam eles de esquerda ou de direita: garantir que em média os salários vão crescendo no nosso país, retirando assim mais famílias do limite mínimo das remunerações.
3.Não há progresso sem educação – e a nossa educação é infelizmente demasiado má
Finalmente, um terceiro ponto. A pobreza alimenta-se com frequência da falta de cultura e da falta de educação. Ultimamente temos falado no nosso país das dificuldades que o Serviço Nacional de Saúde (SNS) enfrenta. É pena que isso não seja acompanhado de uma discussão séria, profunda, sobre as dificuldades que a escola pública e privada enfrentam. O inquérito às práticas culturais dos portugueses, encomendado e tornado público em 2022 pela Fundação Calouste Gulbenkian, mostra uma realidade assustadora, para dar apenas dois exemplos: mais de 60% dos portugueses não leram qualquer livro em 2021; e apenas 28% vai a museus pelo menos uma vez por ano. Estes são números que perpetuam pobreza. Pobreza invisível, porque se reflete sobre os fenómenos que revelam se um povo vive apenas centrado na busca da sobrevivência quotidiana ou se, pelo contrário, aceite e incorre no risco de pensar, de imaginar novos cenários, de desfrutar daquilo que a vida pode vir a trazer.
Olhar de modo cristão para a vida cultural, lida à luz da mensagem do Santo Padre para este dia, obriga a reconhecer que o nosso país é um país onde abunda a pobreza cultural. Não é a só a escravatura moderna que é uma ameaça, ou uma visão política do que devem ser os indicadores certos para aferir da justiça das remunerações que mantêm e aumentam a indigência, é também a incapacidade de desenvolver talentos e capacidades intelectuais, sociais, afetivas, que se adquirem por via do desenvolvimento cultural que fazem. Ter a coragem de combater a pobreza em todas as suas dimensões é missão da Igreja. Que não nos descartemos de o fazer, contrariando este “momento histórico que não favorece a atenção aos mais pobres”.
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.