Cão de Guarda Partilhada

Vivemos um momento de alteração da mentalidade social relativamente à forma como vemos os animais e a própria família. Imagem disso é a discussão judicial acerca da guarda de uma cadela pitbull.

Num mês marcado pelas eleições legislativas, não foi a discussão dos programas políticos dos partidos que mais me cativou, mas sim uma notícia publicada pela Revista Sábado e pelo Jornal Público. Segundo a notícia em causa, no âmbito de um processo de divórcio, encontra-se em discussão um tema pouco habitual e novo – a “guarda” de um animal de estimação.

Começo por deixar a seguinte nota: não pretendo com este artigo debruçar-me sobre a pertinência da qualificação jurídica dos animais enquanto coisas (i.e., sob o ponto de vista jurídico), uma vez que essa questão se encontra, legalmente, resolvida desde 2017, estando reconhecido que são seres vivos dotados de sensibilidade. Além disso, por um lado, se no ponto de vista ético-moral é claro que os animais não são coisas, mas seres vivos merecedores de uma proteção diferente de objetos inanimados, por outro lado é preciso entender que também não são seres humanos, o que deveria implicar uma certa cautela na atribuição de direitos, o que é próprio da natureza humana.

Neste processo, a correr no Juízo de Família e Menores do Tribunal de Mafra, o casal discute a guarda de uma cadela pitbull. Inicialmente foi requerida a guarda partilhada, tendo o pedido sido alterado com o objetivo de atribuir a apenas um dos membros do casal a guarda total do animal.

Recorreu-se à elaboração de uma perícia (realizada por uma médica-veterinária), com vista a determinar o comportamento das Partes e do animal. A médica-veterinária explicou que a cadela precisa de rotinas e que um regime de residência alternada prejudica o seu bem-estar, pelo que não faria sentido atribuir guarda partilhada.

Também há poucas semanas, num processo de divórcio por mútuo consentimento, deparei-me com uma situação semelhante, em que as Partes pretendiam celebrar um “Acordo de Regulação de Responsabilidades Parentais” de um animal. Neste caso, as Partes definiam a residência, os regimes de visita/contacto, as questões de particular importância da vida do animal cuja decisão deveria ser tomada por ambos, entre outras questões – próprias de filhos menores, acrescento.

É, pois, manifesto que existe uma tentativa popular de equiparação dos animais de companhia ao regime legal aplicável aos menores, apesar da lei mencionar expressamente que “são aplicáveis subsidiariamente aos animais as disposições relativas às coisas, desde que não sejam incompatíveis com a sua natureza”. Já o artigo 1793.º-A do Código Civil determina que, em caso de divórcio, os animais “são confiados a um ou a ambos os cônjuges, considerando, nomeadamente, os interesses de cada um dos cônjuges e dos filhos do casal e também o bem-estar do animal”. Ou seja, é evidente que o legislador (e bem) atribui aos animais um grau de proteção superior àquele que atribui às coisas, nomeadamente em termos de “guarda”. Contudo, por não ser claro até que ponto devem os animais ser protegidos e diferenciados das coisas, nem em que condições, na prática acaba por se tentar recorrer à legislação existente em matéria de menores, o que poderá não ser o mais correto.

É, pois, manifesto que existe uma tentativa popular de equiparação dos animais de companhia ao regime legal aplicável aos menores, apesar da lei mencionar expressamente que “são aplicáveis subsidiariamente aos animais as disposições relativas às coisas, desde que não sejam incompatíveis com a sua natureza”

Esta tentativa das Partes e do próprio Tribunal (talvez motivada por uma visão social dos animais enquanto quase-titulares de direitos), cuja legalidade não é evidente, significa seguir o caminho mais fácil (porque permite aplicar um regime existente, evitando que se crie um novo regime, que pense em soluções concretas em função da diferença natural que existe) para a resolução destas situações: equiparar o “superior interesse do animal” ao superior interesse da criança, como critério basilar a seguir pelos Tribunais. Mas será que é o caminho mais correto?

Acredito que não, pela própria e clara diferença de natureza entre Homens e Animais. É fundamental ter em conta que os bens jurídicos em causa, por serem distintos, devem proteger-se de modo diferente – ou, no mínimo, numa escala de valores diferente. Isto significa, nomeadamente, não tratar de modo igual o que é diferente e não tentar aplicar analogicamente, aos animais, um regime jurídico pensado para a proteção dos interesses dos menores. Caso se opte pela aplicação de um regime idêntico, que coloque o bem-estar do animal como critério orientador e primordial (retirando os interesses dos cônjuges ou dos seus filhos que, atualmente, são também tidos em conta), tal implicará problemas evidentes não só para o Legislador como para os Tribunais, que terão de aplicar a lei e aferir/adivinhar (confesso que não sei qual o verbo que melhor se adequa) qual o interesse de um animal, que não se consegue exprimir. Por exemplo, qual a creche que o animal deve frequentar (que já existem)? Ou o médico-veterinário a que se deve recorrer em caso de doença? Como é repartido o dia de “aniversário” do animal? Quantas vezes por dia é que o animal tem de ser passeado e durante quanto tempo? As deslocações do animal para o estrangeiro dependem de autorização? Determinará, também, que os Tribunais, já atolados em processos, tenham mais um tema, sensível e emotivo, para decidir.

Termino com um conjunto de questões que me inquietaram e que deixo como sugestão de reflexão:

Qual o estatuto jurídico dos animais, particularmente em processos de divórcio? Deverão ser protegidos através da aplicação analógica do regime respeitante aos menores, como parecem querer fazer os donos dos animais e os próprios Tribunais? E qual o papel do Ministério Público neste tipo de processos? Deverá representar o animal em juízo, segundo está previsto na lei para os menores? Se sim, faz sentido equacionar que possa ser nomeado ao animal, conforme é reconhecido aos menores, advogado que garanta uma representação jurídica própria e independente? E deverão estas questões ser discutidas nos juízos de família e menores, com competência especializada para, segundo o próprio nome indica, decidir questões relativas a família e menores? Tendo em conta o custo de oportunidade (se o juiz está a analisar um processo relativo a um animal prescinde de estar a analisar um processo relativo a um menor), não deveriam estes tribunais, que se encontram já inundados de processos complicados e que muitas vezes tardam em ficar esclarecidos, ficar reservados a assuntos de família e menores, sendo este tema remetido a um tribunal de competência genérica?

Vivemos um momento de alteração da mentalidade social relativamente à forma como vemos os animais e a própria família. Não é claro qual o estatuto que os animais ocupam na nossa sociedade, o que leva a que, muitas vezes e como demonstram os dois exemplos que acima refiro, tentemos atribuir-lhes direitos e discutir acerca deles questões tipicamente reservadas a humanos. Apesar das inúmeras qualidades que possam ter, é verdade que lhes faltam muitas das características que nos tornam humanos.

Uma coisa é certa: estas questões vieram para ficar e serão cada vez mais frequentes, o que obriga a que pensemos, verdadeiramente, acerca destes problemas.

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.