A ética como base da educação

Afirma-se, com frequência, que a educação escolar anda dissociada da ética pois os princípios que a deveriam nortear são ignorados ou negados. Parece ser necessário indagar o vínculo entre educação e ética, que teríamos por tácito…

“Pode afirmar-se que a educação é a arte de tornar éticos ou morais os educandos, de lhes inculcar valores éticos, de os tornar pessoas morais ou de bons costumes” J. Barros Oliveira, 1997, 53.

Afirma-se, com frequência, que a educação escolar anda dissociada da ética pois os princípios que a deveriam nortear são ignorados ou negados. No entanto, se observamos os documentos educativos oficiais ficaremos na dúvida de que assim seja dada a alusão reiterada que neles se faz a vários desses princípios. Parece, pois, ser necessário indagar o vínculo, entre educação e ética, que teríamos por tácito…

1. A matriz do nosso pensamento – o modo de vermos o mundo, na sua composição e dinâmica, e de nos vermos a nós mesmos e orientarmos as nossas acções – decorre, dizem os filósofos, de um movimento difuso que emergiu nas artes, no início do século XX, marcando, entre as décadas de sessenta e noventa, os mais diversos sectores académicos e sociais, não ficando a educação de fora.

Refiro-me ao movimento pós-moderno, cujo intento, como a designação indica, foi contestar e superar os apertados ditames da racionalidade científica positivista que um movimento anterior – da modernidade, saída do iluminismo – impôs como único critério de validade a todas as outras áreas de conhecimento.

Refiro-me ao movimento pós-moderno, cujo intento, como a designação indica, foi contestar e superar os apertados ditames da racionalidade científica positivista que um movimento anterior – da modernidade, saída do iluminismo – impôs como único critério de validade a todas as outras áreas de conhecimento. Por reacção, queria que a busca de certezas objectivas, universais e definitivas fosse substituída pela construção social e pessoal, anunciando que todo o conhecimento é subjectivo, localizado e relativo.

2. Noto que esta última declaração – marca do pós-modernismo –, sendo veiculada em tom de certeza absoluta, é, afinal, condicente com a posição de partida do modernismo, que contesta. Estamos perante um paradoxo, insignificante só na aparência: os dois movimentos têm-se fundido e confundido, resultando em formas atípicas, de entre as quais se destaca a “pós-verdade”, que tudo admite como absolutamente verdadeiro, ou o contrário, nem sequer interessando saber se o é ou não.

É muito em função deste paradoxo que, no século XX, a vida, individual e colectiva, se define, sem grande preocupação de sentido. Colocando-se por horizonte o “sucesso”, que se quer concreto, visível e imediato, não é de estranhar que se elogiem as maravilhas da técnica que a ele conduz. A padrões estreitos de eficácia e do corresponde mérito, alia-se uma emotividade superficial, hedonista e treinável, que dará o “toque” humano a um “cenário existencial” configurado segundo as regras do “mercado”, garantes do progresso económico-financeiro, o único que permitirá o almejado “bem-estar”. Não é raro a ética ser invocada, ainda que dificilmente possa ser reconhecida como tal.

3. Face à manifesta dificuldade de distinguir o que, em nome do “bem-comum”, deve prevalecer, porque é certo, porque é bom que prevaleça, há que perguntar: como poderemos tornar os mais jovens capazes de entender o que é de aceitar e de rejeitar, “num” mundo e “para um” mundo em que todas as tendências e opiniões são admissíveis desde que conduzam a objectivos de realização?

A pergunta tocará, de modo particular, os educadores, que participam na tarefa interminável de levar os educandos ao aperfeiçoamento ôntico. E que este, constituído como finalidade última da educação, requer a procura de melhor entendimento por não se poder ter segurança absoluta nos entendimentos que se vão encontrando.

Face à manifesta dificuldade de distinguir o que, em nome do “bem-comum”, deve prevalecer, porque é certo, porque é bom que prevaleça, há que perguntar: como poderemos tornar os mais jovens capazes de entender o que é de aceitar e de rejeitar, “num” mundo e “para um” mundo em que todas as tendências e opiniões são admissíveis desde que conduzam a objectivos de realização?

Uma coisa parece certa: não é possível conseguir uma formação humana à margem de inequívocos princípios éticos, que, como obra da própria humanidade – no percurso que fez até aqui –, precisam de ser oferecidos aos mais novos para que eles os possam integrar no seu “modo de ser”, expressão de origem grega que significa “ética”.

4. Esta afirmação remete para dois problemas enunciados por Victoria Camps. O primeiro é declarar, como se vê em muitos documentos curriculares que o “aluno constrói os seus próprios valores”. Presume-se ser desejável que o educador não intervenha nas escolhas axiológicas que cada um possa fazer, e cujas raízes estarão na comunidade de pertença. Na senda do relativismo e do subjectivismo, isso significa legitimar escolhas culturais e pessoais na convicção dogmática de que todas são aceitáveis e toleráveis. Ora, a acção educativa tem de assentar em princípios reconhecidos que, por referência à dignidade humana, estabelecem limites entre posições que são respeitáveis e que não o são. Significa, além disso, ter a mente aberta para o seu melhoramento e, até, para encontrar outros princípios que cumpram o mesmo propósito.

O segundo problema é pressupor que os princípios éticos – de abrangência universal e com carácter universalizante – servem para serem invocados e pouco mais, até porque, em última instância, podem tornar-se reais entraves à proactividade. Ao contrário, eles têm de conduzir a educação, sob pena de se deixarem os mais jovens vulneráveis a diversas formas de doutrinamento, manipulação e submissão, fechando-os nas possibilidades do presente e aceitando linhas de conduta que se afastam da autonomia moral.

5. Portanto, eleger a ética como um dos pilares da educação, recorrendo ao “racionalismo crítico”, tal como foi enunciado por Karl Popper – distante quer do positivismo quer do relativismo – dará acesso a outra matriz de pensamento, de que manifestamente a educação humanista precisa. O que, nota Camps, implica “remar contra a corrente”, “contra o discurso instituído”.

Este tem sido, de resto, o desígnio da escola: ainda que o seu historial revele episódios de conformismo a vários poderes, é seu dever ético assumi-lo, com o esforço que lhe é inerente, sobretudo em momentos em que dela se reclamam respostas funcionais a exigências que se desviam do educativo. O desígnio da instituição em causa é, não nos podemos esquecer, ajudar os educandos a tornarem-se éticos pois “são eles a condição de possibilidade da verdadeira humanidade”, conducentes a um “humanismo global”, diz a citada autora.

A terminar, sublinho que, desvinculada dos princípios éticos que lhe conferem substância, a educação torna-se deseducação. O desafio que se coloca àqueles que são responsáveis por ela é, antes de mais, consciencializarem a matriz de pensamento vigente e aquela que devem ambicionar para que isso não aconteça.

 

Bibliografia

Barros Oliveira, J. (1997). Filosofia, psicanálise e educação. Almedina.

Camps, V. (1996). Los valores de la educación. Grupo Anaya.

Popper, K. (1992). Em busca de um mundo melhor. Fragmentos.

 

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.