A vida é feita de muitas histórias. E cabem muitas histórias na vida de cada um.
Todos sabemos que podem existir várias construções e interpretações de um mesmo acontecimento, dependendo do sentido atribuído por quem as experimenta. Não há famílias simples. Cada um conta a história como sabe, como consegue, quiçá, como gostaria que fosse, interpretando, fantasiando, diminuindo, acrescentando, gerando muitas vezes desencontro.
É curioso ver como pessoas, que viveram os mesmos episódios, os interpretam frequentemente de maneiras tão diferentes. Quantas vezes ouvimos irmãos que cresceram juntos partilharem memórias de uma infância comum, através de narrativas distintas?
A maneira como interpretamos a realidade, a nossa versão dos factos, exprime muito do que somos. As nossas narrativas exprimem não só o nosso viver, mas a forma como o vivemos, como agimos, como sofremos… Isto, apesar de sermos bem mais do que as emoções que sentimos e das histórias que vivemos.
A maneira como interpretamos a realidade, a nossa versão dos factos, exprime muito do que somos.
O poeta, compositor e diplomata brasileiro, Vinícius de Moraes, no seu Samba da Bênção, canta «que a vida é a arte do encontro, embora haja tanto desencontro pela vida». Quando nos prontificamos a ouvir a versão de outra pessoa, com a qual até podemos discordar, podemos descobrir um novo sentido comum. Para isso, é preciso evitar julgamentos precipitados, de forma a deixarmos que os processos mentais sucedam e as memórias presentes se transformem.
Ao aprofundarmos o significado da palavra “arte”, entendemos que é sinónimo de compreensão, humildade, esforço e atividade criadora. A arte do encontro desafia-nos, pois, a repensar as nossas relações. Mas até que ponto estamos mesmo disponíveis para aprender o caminho até ao outro, partindo também à descoberta de nós próprios nessa mesma relação?
Para compreendermos o significado das ações humanas, é necessário sabermos escutar. Sempre que nos dispomos a prestar atenção ao que nos está a ser dito, alargamos a nossa capacidade de entender. Passamos, então, a sentir para além das palavras, a discernir e a agir a partir de uma escolha consciente que nos humaniza e dignifica. É assim que a empatia dá acesso à compreensão. Essa abertura ao próximo acontece sempre que não nos fecharmos em pontos de vista opostos que nos esmagam e reduzem os horizontes.
Sabemos bem que, em pleno século XXI, o flagelo da incompreensão e do desencontro continuam a gerar crises, guerras e desespero. Num mundo onde o ruído e a pressa nos ensurdecem e cegam, é mais fácil erguer muros do que criar pontes que unem perspetivas. São, no entanto, essas pontes que devemos construir se quisermos viver um tempo novo.
É por isso essencial fazermos as perguntas certas, empenhando-nos, individual e comunitariamente, neste processo. Que desafios e escolhas temos perante nós? Qual o verdadeiro significado dos acontecimentos que hoje testemunhamos e como os poderemos superar? O que queremos deixar de herança aos nossos filhos?
O poeta, compositor e diplomata brasileiro, Vinicius de Moraes, no seu Samba da Benção, canta «que a vida é a arte do encontro, embora haja tanto desencontro pela vida».
Tendo completado 99 anos de idade, o Professor Adriano Moreira publicou, no Diário de Notícias do passado 24 de julho, um artigo de opinião, no qual mostra, com a sabedoria que o característica, como o discurso de ódio tantos estragos continua a fazer. Homem de pensamento, de cultura e de ciência, Adriano Moreira alerta-nos para o perigo dos discursos de ódio que hoje em dia imperam: «A debilitação crescente dos valores que foram assumidos pela criação da ONU, garantindo “dignidade, justiça e direitos” para todos os seres humanos (…), deu relevo a um aviso do historiador britânico Timothy Garton Ash: “Liberdade de expressão não significa que deva ser permitido a qualquer pessoa dizer qualquer coisa, em qualquer lugar e a qualquer momento (…). Para respeitar o outro e vivermos juntos em paz, é preciso impor limites e estar atento ao que se pode e não pode dizer em público”».
As palavras ditas de maneira irrefletida podem ter consequências catastróficas, criando ruturas intransponíveis. Saber dizer é essencial, mas é igualmente importante saber calar, tanto na esfera privada como na pública. A nossa sensibilidade precisa de ser reeducada e é por isso necessário fazer espaço para que isso aconteça de verdade.
Neste contexto, a experiência e a prática da oração podem ajudar-nos. É na oração, enquanto verdadeiro encontro, que a “arte do encontro” se aprende e onde se geram silêncios fecundos e vida em plenitude. A descoberta do silêncio, permite-nos ouvir o som da vida e faz-nos entrar numa paz profunda que nos torna capazes de escutar o que realmente importa. E, por isso, a prática da oração pode-nos tornar mais humildes e capazes de escutar o outro. É assim que caminhamos para a comunhão das pontes que o mundo de hoje tanto precisa.
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.