Vem e verás

As pessoas com deficiência são pessoas com capacidades e incapacidades que, por causa da sua incapacidade, precisam de mais tempo para mostrar as suas muitas capacidades, iguais a todas as pessoas em dignidade, com deveres e direitos.

As pessoas com deficiência são pessoas com capacidades e incapacidades que, por causa da sua incapacidade, precisam de mais tempo para mostrar as suas muitas capacidades, iguais a todas as pessoas em dignidade, com deveres e direitos.

O tema da mensagem do Papa Francisco para o Dia das Comunicações Sociais para este ano foi “Comunicar encontrando as pessoas onde elas estão e como são. ‘Vem e verás’ (Jo1,46)”. A propósito deste tema, proponho fazermos um zoom-in às pessoas com deficiência: como são, onde estão e por que precisam da comunicação social. Talvez fiquemos todos com vontade de querer conhecer pessoas com deficiência, ouvir o que têm para dizer, contar as suas reflexões e histórias!

A deficiência é um tema muito vasto e complexo. As Nações Unidas dizem que é um conceito em evolução e que a deficiência resulta da interação entre pessoas com incapacidades (…) que impedem a sua participação plena e efetiva na sociedade em condições de igualdade com as outras pessoas.

Estas incapacidades podem ser não ouvir bem, ou não ouvir nada; ver pouco ou não ver; não conseguir fazer determinados movimentos ou não conseguir movimentar-se de todo; podem ser uma dificuldade em comunicar seja por não conseguir compreender ou por não conseguir explicar uma mensagem simples ou complexa. Pode até acontecer a total ausência da capacidade de comunicar. Este conceito das Nações Unidas, embora totalmente aceite como definição da deficiência, pode levar-nos a olhar para estas pessoas todas num conjunto, como se fossem todas ‘iguais entre si’ nas suas características, um grupo homogéneo. É uma injustiça deste conceito. As pessoas com deficiência são mesmo todas diferentes entre si, talvez seja uma característica intrínseca da deficiência – a diversidade.

Têm, no entanto, uma marca comum e igual a todas as pessoas sem deficiência – a marca da dignidade. O valor incalculável de cada vida humana não é posto em causa pela sua incapacidade.

Têm, no entanto, uma marca comum e igual a todas as pessoas sem deficiência – a marca da dignidade. O valor incalculável de cada vida humana não é posto em causa pela sua incapacidade. A dignidade não pode ser posta em causa por causa de qualquer incapacidade que a pessoa possa ter. E decorrendo da dignidade vêm os deveres e os direitos.

As pessoas com deficiência têm sim uma outra característica que as leva a serem diferentes das pessoas sem deficiência: têm barreiras que são invisíveis para as pessoas sem deficiência e com as quais têm que lidar em todos os momentos da sua vida. A questão é que as pessoas sem deficiência não se apercebem e não se lembram que as pessoas com deficiência estão permanentemente a ultrapassar essas barreiras para fazer o que as pessoas sem deficiência fazem com pouco esforço: ver, ouvir, falar, trabalhar, conviver. Ou seja, despendem muito mais esforço para fazer o mesmo ou parecido. Esta característica leva à exclusão… porque o tempo não é o mesmo nas duas situações.

Podemos então pensar que as pessoas sem deficiência têm a incapacidade de esperar…

A questão é que as pessoas sem deficiência não se apercebem e não se lembram que as pessoas com deficiência estão permanentemente a ultrapassar essas barreiras para fazer o que as pessoas sem deficiência fazem com pouco esforço: ver, ouvir, falar, trabalhar, conviver.

Este trabalho permanente que as pessoas com deficiência fazem para acompanhar as pessoas sem deficiência e para se sentirem incluídas na sua comunidade faz com que as pessoas com deficiência encarem a vida de forma diferente. E que tenham muito para ensinar às pessoas sem deficiência. A resiliência será um exemplo muito concreto, a humildade, a confiança que decorre da dependência. Em muitos casos, a alegria, porque sem um bom sentido de humor tudo será mais difícil. Poderíamos continuar a lembrarmo-nos de características e dos seus respetivos exemplos…

Como são as pessoas com deficiência? São pessoas com capacidades e incapacidades que por causa da sua incapacidade precisam de mais tempo para mostrar as suas muitas capacidades, iguais a todas as pessoas em dignidade, com deveres e direitos.

E onde estão as pessoas com deficiência? Dentro do conceito de inclusão há um aspeto que é o da invisibilidade. A deficiência pode ser invisível porque simplesmente não se vê. Por exemplo: eu não consigo ver se uma pessoa é surda sem falar com ela. Mas a deficiência pode ser invisível porque está de tal forma incluída que não nos apercebemos dela – o meu filho Bernardo é deficiente profundo, não fala, não vê, não anda e raramente nos lembramos lá em casa que ele é deficiente. Se estivermos num grupo de pessoas com e sem deficiência, ao fim de algum tempo, é difícil apercebermo-nos de quem são as pessoas com deficiência. Fica o desafio.

A proximidade elimina barreiras, … parece óbvio, não é? Em março, o Papa Francisco disse à comunidade do Pontifício Colégio Mexicano de Roma que as palavras do estilo de Deus são: ternura, compaixão e proximidade. É o estilo que o Papa Francisco recomenda aos sacerdotes e que me atrevo a recomendar a todos nós. Para que ninguém seja excluído da nossa preocupação e das nossas orações.

Mas a invisibilidade da deficiência pode advir do facto de as pessoas com deficiência não estarem nos mesmos espaços do que as outras. Sabemos que estão em casa, ou nas instituições. Porque na escola incomodam a aprendizagem das crianças sem deficiência, porque no trabalho ninguém acredita nas suas capacidades para além das incapacidades que sabemos que têm, porque na Igreja perturbam as celebrações ou porque se pensa que não podem aceder a alguns sacramentos. Este tipo de invisibilidade, que provoca a exclusão, diminui-nos, torna-nos a todos mais pobres. Impede-nos de aprender com o exemplo de outros que têm tanto para ensinar, que não são a sua deficiência, mas que a aceitam e se esforçam por viver plenamente com ela e com todas as pessoas.

Sabemos que estão em casa, ou nas instituições. Porque na escola incomodam a aprendizagem das crianças sem deficiência, porque no trabalho ninguém acredita nas suas capacidades para além das incapacidades que sabemos que têm, porque na Igreja perturbam as celebrações ou porque se pensa que não podem aceder a alguns sacramentos.

Se as pessoas sem deficiência não conhecem pessoas com deficiência, se os seus espaços não são comuns, quando se encontram estranham, não se reconhecem como iguais, por isso, excluem.

Neste movimento de proximidade a comunicação social pode ter um papel decisivo, transformador, diria mesmo inclusivo. Para além das questões que já conhecemos de denúncia de situações em que a dignidade humana é posta em causa, gostava de realçar o tanto mais que importa comunicar acerca das capacidades que as pessoas com deficiência têm e que são de alguma forma escondidas pela sua incapacidade. Como se por terem uma incapacidade todas as suas capacidades se possam tornar menos relevantes. São estas capacidades que importa comunicar, para podermos promover a valorização da pessoa com deficiência na sociedade e, assim, potenciar a sua inclusão.

Num mundo ideal, um arquiteto poderia exercer a sua profissão e ser entrevistado sobre o seu trabalho apesar de se mover numa cadeira de rodas, um advogado poderia escrever pareceres, acusar e defender pessoas com muito sucesso mesmo tendo muito baixa-visão, uma jovem com síndrome de Down poderia cumprir o sonho de ser apresentadora de televisão, uma pessoa cega e com síndrome de Bardet-Biedl poderia fazer o seu discernimento vocacional. São exemplos reais de pessoas com sonhos reais e que se esforçam muito mais do que qualquer arquiteto, advogado ou apresentador para seguir a profissão e a vocação que desejam.

No nosso mundo, que não é ainda o ideal, as pessoas com deficiência têm dificuldade em mostrar as suas capacidades e em ultrapassar a barreira da exclusão por causa da sua incapacidade. É neste ponto que a comunicação social pode fazer mais e melhor. Dar a conhecer as pessoas com deficiência não pela sua incapacidade, mas pelas suas imensas capacidades, de forma que a aproximação, a compaixão e a ternura aconteçam e as barreiras que levam à exclusão possam ser eliminadas de vez. Podemos e devemos contar as suas histórias de superação, mas seria pobre ficar por aqui. Tomar consciência das capacidades de cada um, independentemente das suas incapacidades, promove a sua valorização, promove a inclusão.

Tomar consciência das capacidades de cada um, independentemente das suas incapacidades, promove a sua valorização, promove a inclusão.

A comunicação social pode liderar este movimento de valorização, despromovendo o sentimento de pena, sendo exemplar na dignificação das pessoas com deficiência, expondo as suas capacidades!

Há alguns exemplos de ações desencadeadas por associações de pessoas com deficiência como o #melhorcontigo, promovido pela Associação de pais de pessoas com T21; ou o recente anúncio sobre a empregabilidade em que o cantor Sting expõe em palavras o poder que o exemplo de empregar alguém com deficiência pode ter na promoção de mais empregos para outras pessoas com incapacidades. Existe também na plataforma Design the future uma secção dedicada ao percurso escolar e à carreira de pessoas com deficiência, com testemunhos na primeira pessoa, chamado Inclusive future. Se ainda não conhece o Américo Lisboa Azevedo e as suas entrevistas e contos, recomendo vivamente que o procure no Facebook.

Fica o desafio à comunicação social para que a valorização da pessoa com deficiência através do trabalho de cada um permita que a sociedade olhe para as pessoas pelas suas capacidades e que, sendo sensível alguma incapacidade que possa ter, não a limite a essa incapacidade, mas que a respeite e que lhe possa dar o espaço – a audiência – que precisa para ser incluída.

Como ouvi num anúncio de uma associação brasileira: Informação é inclusão e evita o preconceito!

 

Este texto foi inicialmente apresentado na Jornada das Comunicações Sociais, no dia 24 de setembro

Fotografia: Clara Diniz

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.