Sobre o processo de morrer

Pode morrer-se são, porque se está inteiro, coerente, desprendido e íntegro. Pacificado e sereno. Quem acompanha alguém em despedida cresce existencialmente com uma pessoa que parte assim.

Pode morrer-se são, porque se está inteiro, coerente, desprendido e íntegro. Pacificado e sereno. Quem acompanha alguém em despedida cresce existencialmente com uma pessoa que parte assim.

Na sequência do diagnóstico de uma doença grave, e nascida numa família de médicos, uma familiar comentou comigo: “Já sei que estás muito doente. Isso é mortal”. Se o olhar matasse, o do meu pai tê-la-ia matado. Na morte não se fala. O médico cura. A morte a representar o fracasso da Medicina… Mas… será que sim? A partir de quando passaram os médicos e a Medicina a servir para curar e não para cuidar?

Até ao início do séc. XX era conhecimento comum, para os médicos e para as pessoas doentes, que o papel daqueles era o de cuidadores. A cura poderia ou não acontecer. Não era esperada, exigida ou obrigatória. Aceitava-se a não cura, a finitude, com menos violência, zanga, desespero do que hoje. Aceitava-se como um acontecimento natural, normal da vida.

A morte não é um fracasso ou um problema a resolver. Não é uma doença. É um processo normal, natural e bem organizado. Tal como o processo de nascer. São palavras ditas na conferência “O processo de morrer – Escola de vida”, por Enric Benito Oliver, oncologista, há 35 anos e, como o mesmo diz, ‘convertido aos Cuidados Paliativos’ já há uns anos.

A primeira vez que assisti a uma pessoa em estertor fiz-me de forte e tentei disfarçar a ignorância. Fiquei a render as filhas, que não queriam deixar a mãe sozinha, mas precisavam de sair um pouco do quarto onde ela estava. Aproximei-me da senhora. Fiz-lhe festas na cabeça. Fui buscar a viola. Trauteei música. Depois parei a viola. Limitei-me a estar. É que não sabia o que dizer. Hoje percebo perfeitamente que a viola era para me fazer companhia a mim. Não sabia se, com o efeito dos opiáceos para controlo da dor, a senhora ouviria. Era para disfarçar de alguma forma o ruído do estertor. O incómodo deste era para mim, não para a senhora. O indisfarçável, para mim, era a morte iminente e não saber o que fazer, o que dizer…

Aceitava-se a não cura, a finitude, com menos violência, zanga, desespero do que hoje. Aceitava-se como um acontecimento natural, normal da vida.

À segunda portei-me menos mal. Talvez porque abracei e consolei uma filha, estupefacta e zangada porque o pai, aos 90 anos, tinha morrido. Basta ter nascido. Não é culpa de ninguém.

A terceira experiência foi um pouco melhor. Pelos vistos soube estar e não disse mais do que: ‘Deixe-se ir. Não tenha medo. Quem fica, fica bem. Pode descansar.’ Calei-me, estive.

Para Enric Oliver, acompanhar uma pessoa na morte não é fazer ou dizer alguma coisa. Não é preciso. Basta estar. Basta ser. Ser a Ser, deixa de se ser na relação hierárquica ou no título. Cara a cara. Com e em verdade. Porque o cuidador é ele mesmo frágil e vulnerável.

O que posso dizer é que senti que o outro lado se torna quase tangível. Para onde vamos? Pois, não sabemos. E, ainda que confie que sei, não o posso provar. Mas estar em verdade é, pelo menos para mim, totalmente realizador.

Antes dos grandes descobridores se terem aventurado em viagens, ‘por mares nunca dantes navegados’ (poetizou Camões), pensava-se que a Terra era plana e poderia cair-se no abismo. O medo bloqueava a partida. Para Enric Oliver, não há evidências de que a vida seja plana e acabe. Vamos vendo a vida segundo os conteúdos da nossa mente. Na ciência moderna a consciência é um subproduto da mente. O que é real são os átomos, moléculas, partículas, células, tecidos e órgãos. São mensuráveis e quantificáveis. Analisáveis ao microscópio e nas PET. Mas o afeto, a amizade, a ternura, o amor, o carinho, não existem também? Mesmo que não se possam medir, isso torna-os menos reais?

A 31.01.2022 foi publicado um artigo na Revista Lancet “On the Value of Death: bringing death back into life”, traduzindo: “O valor da Morte – devolver a Morte à Vida”. Os vários especialistas referem que a morte, no séc. XXI, constitui um processo paradoxal, se se considerarem os países desenvolvidos face aos subdesenvolvidos. Nos primeiros, a procura de uma morte digna pode acabar por produzir, pela medicação e intervenção excessiva, sofrimento maior e, nos segundos, os tratamentos insuficientes conduzem a mortes decorrentes de infeções e dores que poderiam ser evitadas, por não haver sequer morfina para as obviar.

Como pergunta Atul Gawande em Ser Mortal, não serão os processos invasivos de prolongamento da vida no séc. XXI tão carniceiros como as sangrias na Idade Média?

Dizem os especialistas que a morte é um processo biográfico, relacional e espiritual, e não simplesmente fisiológico. A pandemia, as alterações climáticas e a ideia de vencer a morte assentam, de acordo com estes, na mesma estupidez: na ilusão de que o homem controla a natureza em vez de perceber que é sua parte integrante.

Aceitar a própria morte promove uma outra forma de viver e estar na vida. Buscar-lhe o sentido último e a razão de ser, mais do que procurar ter.

A angústia e o medo da morte não são algo novo. Há cerca de 2300 anos um sábio disse que o que mais o espantava sobre a morte é que as pessoas viam as outras morrerem, mas achavam que elas mesmas – o eu – não iriam morrer. Do ponto de vista da Psicologia poderia dizer-se que é uma defesa. É procurar manter o focus de controlo na vida.

Aceitar a própria morte promove uma outra forma de viver e estar na vida. Buscar-lhe o sentido último e a razão de ser, mais do que procurar ter. Prestígio, dinheiro, poder, reconhecimento acabam por ser, para Oliver, cargas que prendem e dificultam o processo de abertura e libertação tão necessários para um processo de morte sereno. A pergunta que se coloca é: foste feliz? Ainda que o corpo esteja deteriorado e já não puder corresponder.

Ser otimista e achar que vai correr tudo bem é diferente de ter esperança. Na esperança sabe-se que, aconteça o que acontecer, tudo tem um sentido. Não significa gostar do que está a acontecer (ou prestes a acontecer, pois quem está a morrer sabe que vai morrer).

O início não é fácil, pois há como que domesticar o medo da própria morte e reconhecer a sua finitude. Em ‘A morte de Ivan Ilitch’, Tolstói diz que quem morreu foi a morte, não foi Ivan.

O meu processo de transformação tem-se dado. Começou há mais de 10 anos, com a morte repentina de uma das minhas irmãs. No princípio tinha muitas teorias. Aliás, na véspera da sua morte tinha estado a dar uma formação sobre o luto. Alguém me perguntou como se geria uma morte inesperada. Dei respostas de compêndio. Um dia depois não saberia o que dizer. Hoje é certo que o gosto por estar em verdade, sem serem necessários disfarces, é o que me faz sentido.

Entende a morte como o que permite a pessoa abrir-se à verdade e dar sentido à sua vida, uma vez que abre caminho para responder à pergunta sobre quem é e qual o significado da sua vida.

De forma provocadora, Benito Oliver diz não saber bem o que é a morte, pois precisa de a experimentar pessoalmente para poder dizer o que é. É indolor, é normal e certa, ou seja, vai acontecer, é inevitável. Entende a morte como o que permite a pessoa abrir-se à verdade e dar sentido à sua vida, uma vez que abre caminho para responder à pergunta sobre quem é e qual o significado da sua vida.

Por último, Oliver defende que quem acompanha alguém na morte tem garantido um bombom. Pode morrer-se são, porque se está inteiro, coerente, desprendido e íntegro. Pacificado e sereno. Quem acompanha alguém em despedida cresce existencialmente com uma pessoa que parte assim. Mais do que o que lê nos livros ou aprende na Universidade, acompanhar alguém na morte, em verdade, acaba por transformar interiormente quem acompanha. É uma fonte de aprendizagem, de sabedoria e é fruto da escola da vida. Quem acompanha cria necessariamente relação com quem está a partir e tem de se aproximar. Aceita o que não pode mudar, mesmo que não goste.

É fundamental a competência técnica e profissional do médico, para o controlo da dor, para o conforto da pessoa, evidentemente. Assegurar à pessoa em partida o respeito que merece, criando no ambiente que é particularmente sensível, tranquilidade, paz, serenidade, silêncio, e evitando pessoas a chorar. Mostrar a quem se está a despedir como foi bom e rico a poder ter conhecido e com ela convivido, mas que é tempo de a deixar descansar, libertando-a assegurando que os que ficam ficarão bem.

 

Bibliografia

A morte de Ivan Ilich (1886). Tolstói, L.

Ser Mortal (2014). G., Atul

O processo de morrer – Escola de Vida, conferência de Enric Benito Oliver

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.