Porque é que alguém haveria de querer ser jesuíta hoje?

Canísio teria boas razões para não ser jesuíta; mas a única razão que de facto pesou na sua vida foi a liberdade que lhe permitiu seguir para onde quer que Cristo o conduzisse. Passaram esta semana 500 anos do nascimento do jesuíta holandês

Canísio teria boas razões para não ser jesuíta; mas a única razão que de facto pesou na sua vida foi a liberdade que lhe permitiu seguir para onde quer que Cristo o conduzisse. Passaram esta semana 500 anos do nascimento do jesuíta holandês

Tal como hoje, havia em 1543 muito boas razões para um homem não querer ser jesuíta. As pestes recorrentes e a constante ameaça de guerras e violência tornavam a vida na Europa do século XVI tensa e incerta. Grupos minoritários – sobretudo o povo judeu – eram perseguidos e culpabilizados pelos mais diversos problemas da época. Ricos e poderosos permaneciam, na sua maioria, incólumes diante das dificuldades dos mais pobres e desfavorecidos. A Igreja Católica vivia assolada por escândalos, com líderes corruptos e alheados da realidade e com lutas internas sobre doutrina e prática cristã. A situação é suficientemente conhecida. Todavia, hoje, a Companhia de Jesus tem uma reputação de quase quinhentos anos que pode servir tanto para atrair, como para dissuadir potenciais interessados…

Quando Pedro Canísio ouviu falar pela primeira vez da Companhia em 1543, tinham passado apenas três anos sobre a sua fundação oficial, eram poucos os seus membros e a sua estrutura institucional era ainda muito incipiente. Canísio era um jovem inteligente e talentoso, a quem uma panóplia de carreiras de sucesso, tanto na vida secular como religiosa, estava aberta. Como tantos jesuítas que se lhe seguiram, Pedro Canísio tinha todos os motivos para não entrar na Companhia de Jesus. No entanto, apenas alguns meses depois de saber da existência desta ordem, fez os votos perpétuos como jesuíta, a 8 de maio de 1543, dia do seu vigésimo segundo aniversário. Quando morreu a 21 de dezembro de 1597, Canísio tinha vivido como jesuíta por mais de cinquenta e quatro anos.

Pedro Canísio nasceu em Nimega, na atual Holanda, a 8 de maio de 1521, exatamente há quinhentos anos atrás. Filho do presidente da câmara da cidade, cresceu num ambiente confortável, com acesso, desde cedo, a uma educação de excelência, e bastante enraizado na fé católica. Aos quinze anos deixou a sua cidade natal para estudar Humanidades na Universidade de Colónia. Aos dezanove, enquanto estudava na universidade, fez um voto privado de castidade, com a intenção óbvia de se tornar padre, de entrar na vida religiosa, ou de ambas. Contudo, e apesar da proximidade que manteve durante esses anos com o clero diocesano e os Cartuxos daquela cidade, Canísio permaneceu indeciso quanto à forma  concreta que a sua vocação tomaria até que, no início de 1543, conheceu na universidade um jovem chamado Álvaro Alfonso. Este jovem tinha sido capelão das filhas do Imperador Carlos V até 1542, altura em que conheceu Pedro Fabro, um dos membros fundadores da Companhia de Jesus, que veio viver durante um tempo na corte de Carlos V. Quando Fabro partiu, Alfonso acompanhou-o, tendo de seguida entrado na Companhia. Alfonso deve ter falado de Fabro e dos Exercícios Espirituais de modo brilhante e entusiástico, uma vez que, pela força da sua palavra, Canísio deixou Colónia a pé, dirigindo-se para a cidade de Mainz onde lhe tinham dito que Fabro se encontrava. Quando o encontrou, pediu a Pedro Fabro para fazer os Exercícios Espirituais de que Alfonso que havia falado e Fabro concordou conduzi-lo através do retiro. Pouco depois de Canísio ter completado o retiro de cerca de trinta dias, fez os votos como jesuíta.

Filho do presidente da câmara da cidade, cresceu num ambiente confortável, com acesso, desde cedo, a uma educação de excelência, e bastante enraizado na fé católica.

Se nos abstrairmos do facto de já conhecermos o final da história e dos coloridos de narrativas piedosas, a vocação de Pedro Canísio não faz muito sentido. Ele era um homem inteligente e bastante consciente dos problemas da sociedade e da Igreja. No entanto, aos vinte e dois anos, deitava a perder todas as oportunidades de uma carreira promissora que tinha diante de si, para se juntar a um grupo sobre o qual muito pouco conhecia. A sua fé era profunda, mas certamente teria feito muito mais sentido ter entrado na Cartuxa, seguindo o exemplo de santidade da comunidade a que se tinha afeiçoado em Colónia. Pelo menos conhecia bem essa comunidade, ao contrário dos jesuítas. Na verdade, a Companhia não tinha ainda constituições formais, os Exercícios Espirituais ainda não tinham sido publicados e, por isso, não existiam na forma que os conhecemos hoje. Além disso, e como nos mostra o facto de Canísio ter feito os seus votos logo após o retiro de trinta dias, ainda não tinham sido sequer estabelecidos quaisquer regras ou estruturas para a formação dos jesuítas.

Hoje em dia os jesuítas têm dois anos de preparação para os votos (noviciado), a que se seguem cerca de nove anos de formação antes da ordenação sacerdotal e, após esta, cerca de cinco ou mais anos antes dos últimos votos. É, pois, provável que hoje muitos superiores jesuítas ficassem escandalizados ao perceberem que Canísio fez os seus primeiros votos perpétuos sem nenhum tipo de formação para além dos Exercícios de mês, que foi ordenado padre três anos mais tarde, e que fez os seus votos finais em 1549, apenas seis anos depois de ter conhecido o primeiro jesuíta. Além de que, já nessa altura, se havia insurgido contra um arcebispo herético, fora forçado pela cidade de Colónia a abandonar a residência jesuíta local, uma vez que a cidade não reconhecia a Companhia como uma nova comunidade religiosa, e havia participado como teólogo na pouco edificante primeira sessão do Concílio de Trento.

Tudo aquilo que Pedro Canísio ainda não sabia sobre a fragilidade da Igreja Católica, a sua vocação jesuíta acabou por lhe ensinar. Pelo facto de ser jesuíta, viu-se envolvido em intrigas eclesiásticas, disputas amargas com protestantes e em constantes discussões políticas com governantes de cujo apoio necessitava. Durante todo este tempo, lamentava a ignorância da fé que persistia entre o comum dos católicos e desejava sempre colocar-se ao serviço dos prisioneiros, dos doentes e das crianças – mesmo quando a sua vocação lhe exigia longas horas em frente a uma secretária, pregar em Cortes reais, negociar propriedades e, tal como acontece com qualquer superior jesuíta, a resolução de intermináveis disputas triviais entre companheiros jesuítas. Analisada sob uma certa perspetiva, a vida de Pedro Canísio pode constituir como que um resumo daquilo que os jovens podem hoje temer que venha a ser o seu destino, quando ponderaram uma vocação religiosa: Canísio estava constantemente isolado, marcado pelos pecados da Igreja e impedido de fazer o bem que mais queria fazer.

Analisada sob uma certa perspetiva, a vida de Pedro Canísio pode constituir como que um resumo daquilo que os jovens podem hoje temer que venha a ser o seu destino, quando ponderaram uma vocação religiosa: Canísio estava constantemente isolado, marcado pelos pecados da Igreja e impedido de fazer o bem que mais queria fazer.

No entanto, no último ano da sua vida, quando Pedro Canísio olhou para o que fora a sua vida, as suas mágoas e sucessos, a sua vocação jesuíta sobressaiu como o aspeto pelo qual estava mais grato. Pouco antes da sua morte, já muito debilitado, ditou o seu Testamento Espiritual a um companheiro jesuíta. Neste texto, Canísio resumiu o legado espiritual que desejava deixar, ao mesmo tempo que dava graças a Deus pelas muitas bênçãos da sua vida. A descrição que fez aos seus companheiros da sua vocação é tão comovente como inesperada. Canísio que – será recordado – tinha feito um voto de celibato e se colocara desde então num caminho espiritual muito particular três anos antes de conhecer Pedro Fabro, comparou esse encontro com o encontro bíblico de Mateus com Jesus (cf. Mt 9, 9-13). Canísio conta que “quando, sentado no posto de cobrança, escutei a não velada voz de Deus, não tive qualquer desejo de resistir ao chamamento […] mas, como Mateus, levantei-me e afastei-me deste mundo sujo, quebrando aquelas correntes nas quais me encontrava bastante enredado”.[1] Olhando para trás, este jesuíta considerava que somente depois ter conhecido Fabro, ter feito os Exercícios Espirituais, e ter entrado na Companhia, é que se libertou verdadeiramente das correntes do mundo que o mantinham amarrado. Esta afirmação é, de facto, extraordinária, se tivermos em conta, por um lado, a vida piedosa e irrepreensível que vivia já antes de entrar na Companhia e, por outro, os pesados fardos que lhe foram colocados sobre os ombros enquanto jesuíta. Contudo, para o jesuíta holandês, a sua vocação foi sempre a fonte principal da sua liberdade para amar e servir a Deus. Canísio é perentório em afirmar que “nunca me arrependi da minha profissão [religiosa] por muito que muitos me tenham atormentado ou insultado”[2], chegando mesmo ao ponto de dizer que “tenho pena daqueles que ficam intimidados perante a disciplina religiosa como se ela fosse só dificuldades ou um jugo pesado”.[3] Na verdade, a sua vida pode ter sido repleta de dificuldades, no entanto, a sua vocação jesuíta nunca representou para ele um fardo.

Tudo isto deixa-nos com a persistente questão de perceber porquê. Canísio vivia já uma vida de fé comprometida antes de conhecer a Companhia; no entanto, ele via a sua vocação jesuíta como a fonte da sua liberdade espiritual. Enfrentou muitos problemas, precisamente por ser jesuíta, que de outra forma nunca teria enfrentado; contudo, ria-se da ideia de se considerarem os votos religiosos como um jugo pesado a suportar. A resposta a este mistério parece residir no que aprendeu sobre Deus e sobre si próprio quando fez os Exercícios Espirituais, sob a direção de Pedro Fabro, na Primavera de 1543. Este foi o momento em que tudo mudou para o jesuíta holandês, o momento em que olhou para trás e se comparou com Mateus sentado no posto de cobrança. Ao contrário do que acontece com a esmagadora maioria daqueles que fizeram Exercícios Espirituais nos últimos quinhentos anos, no que se refere a Pedro Canísio temos a sorte de possuir um registo histórico. Fabro manteve um diário espiritual durante o tempo em que deu os Exercícios a Canísio e, embora este fosse obviamente um documento privado, após a sua morte, foi conservado e partilhado entre jesuítas, tendo acabado por ser publicado. [4] Nas entrelinhas das reflexões feitas por Fabro sobre os Exercícios que dera a Canísio, é revelado muito do que aconteceu ao jesuíta holandês durante esses dias fundantes.

A resposta a este mistério parece residir no que aprendeu sobre Deus e sobre si próprio quando fez os Exercícios Espirituais, sob a direção de Pedro Fabro, na Primavera de 1543.

Fabro escreve que “durante uma visita ao Mestre Pedro [. .] que na altura estava a fazer os Exercícios, compreendi mais claramente do que nunca” algumas coisas sobre “o discernimento dos espíritos”. [5] Há pessoas, explica Fabro, “particularmente aquelas que são piedosas, bastante experimentadas na devoção, e livres do pecado”, nas quais o mau espírito “não é reconhecido porque estas não têm pensamentos que se desviam dos limites da verdade e do bem”. Obviamente, Fabro descreve aqui a situação do próprio Canísio. Pessoas como ele não veem o bem de que são capazes, simplesmente porque são boas; não reconhecem que o mau espírito está a limitar o seu potencial porque este atua nelas com subtileza extrema. Assim, explica Fabro, é importante ajudar tais pessoas a considerar não só a sua vida como ela é, mas indicar-lhes um “estado de vida mais perfeito” para que “possam reconhecer mais facilmente ambos os espíritos: o espírito que fortalece e o espírito que enfraquece, o espírito que ilumina e o espírito que obscurece e corrompe – quero dizer o espírito bom e o que se lhe opõe”. Por outras palavras, Fabro convidou Canísio a imaginar viver a sua vida de acordo com o seu potencial máximo e, à luz desta imagem, convidou-o, de seguida, a olhar para a sua vida presente e a reconhecer como o mau espírito o estava a limitar e a que bem Deus o inspirava. Dessa perspetiva, Canísio viu a sua vida com maior clareza, e percebeu o que o bloqueava e o que o libertava. E assim, em liberdade, deixou para trás a vida que vinha vivendo e decidiu entrar na Companhia de Jesus.

Nem todos os que fazem os Exercícios Espirituais são chamados a uma vocação religiosa. Mas o que os Exercícios fizeram por Pedro Canísio foi, sobretudo, ajudarem-no a ver a sua vida mais claramente. Os Exercícios mudaram a questão que se lhe impunha, preocupada agora não com os sucessos, fracassos e carreira profissional, mas com a liberdade interior, o serviço e o amor. Colocado desta forma, Canísio, olhou para o homem que lhe deu os Exercícios, Pedro Fabro, e percebeu que nada mais queria para a sua vida do que aquilo de que Fabro era testemunho. Queria servir a Deus e ao povo de Deus da forma como Fabro servia. Queria ser livre como Fabro era livre. Sem dúvida, Canísio teria ainda muito boas razões para não ser jesuíta; mas a única razão que de facto pesou foi a liberdade que lhe permitiria seguir para onde quer que Cristo o conduzisse.

[1] Das Testament des Petrus Canisius. Vermächtnis und Auftrag, eds. Julius Oswald & Rita Haub. (Frankfurt am Mein: Gruppe für Ignatianische Spiritualität, 1997), 37. A tradução original (do latim para o inglês é do autor).
[2] Das Testament des Petrus Canisius, 38.
[3] Das Testament des Petrus Canisius, 39.
[4] Pedro Fabro, The Spiritual Writings of Pierre Favre, eds. Edmond C. Murphy & John W. Padberg (Saint Louis: Institute of Jesuit Sources, 1996), pp. 57-315.
[5] Todas as citações que se seguem são retiradas de The Spiritual Writings of Pierre Favre, 240-242.

 

Versão original deste texto, em inglês

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.