Mudar a política, mudar o país

Marisa Matias refere os "mitos" desfeitos nas últimas legislativas e aponta mudanças que considera urgentes: rever a viabilidade da Zona Euro, regular o mercado de trabalho, modernizar o Estado Social e apostar no investimento qualificante.

Marisa Matias refere os "mitos" desfeitos nas últimas legislativas e aponta mudanças que considera urgentes: rever a viabilidade da Zona Euro, regular o mercado de trabalho, modernizar o Estado Social e apostar no investimento qualificante.

As últimas eleições legislativas constituíram um momento refundador na nossa democracia. O entendimento inédito entre PS e partidos à sua esquerda fez com que se evaporassem três mitos da política portuguesa: a ideia de que só a direita se pode entender, a fraude de que se vota para eleger um Primeiro-Ministro e a miragem do voto útil. A política portuguesa mudou para melhor e para sempre.

A nova maioria constituiu-se sob uma agenda centrada na devolução de direitos e rendimento atacados pelo anterior governo, no plano dos salários, pensões, prestações sociais e impostos. A proposta consistia em recuperar rendimento para recuperar a economia, através do estímulo à procura. É verdade que a economia também beneficiou de uma conjuntura internacional favorável. Não menos verdade é que essa conjuntura já vinha de trás.

A questão das contas pública deveria ser, pelo menos na minha leitura, abordada através dessa recuperação económica. Uma economia que cria emprego é uma economia em que mais pessoas pagam impostos sobre o seu salário e sobre o seu consumo e em que mais empresas pagam mais impostos sobre os seus lucros. É também uma economia em que menos pessoas precisam de recorrer a prestações sociais. O principal mecanismo de ajustamento (ou desajustamento) das contas públicas é o crescimento (ou falta dele).

Foi este raciocínio que orientou a política económica dos últimos anos? Infelizmente, só em parte. A atual maioria conseguiu estancar e reverter a política de ataque aos rendimentos que vinha sendo sido conduzida, provando que a austeridade não só não era a única solução como era contra-producente. No entanto, a ideia fixa do Governo e, em particular, do seu Ministro das Finanças, com um ajustamento orçamental muito para lá do que estava acordado com as instituições europeias, tornou-se um obstáculo a uma política de desenvolvimento e recuperação dos serviços públicos essenciais.

Não se trata de dizer que se devia ter feito um ajustamento orçamental mais lento para poder promover o investimento em infraestruturas ou serviços públicos. O meu ponto é outro: se tivéssemos investido em áreas como a saúde, a educação, a reconversão energética, a reabilitação urbana e num parque habitacional público, na ferrovia e outros transportes colectivos, o ajustamento orçamental poderia ter sido mais significativo.

Marisa Matias

Na realidade, não se trata de dizer que se devia ter feito um ajustamento orçamental mais lento para poder promover o investimento em infraestruturas ou serviços públicos. O meu ponto é outro: se tivéssemos investido em áreas como a saúde, a educação, a reconversão energética, a reabilitação urbana e num parque habitacional público, na ferrovia e outros transportes colectivos, o ajustamento orçamental poderia ter sido mais significativo. Talvez não no primeiro ano de implementação desta política, mas certamente nos subsequentes. A razão é a mesma pela qual a devolução de rendimentos funcionou: quem quer pagar dívidas tem de gerar riqueza. É o crescimento económico, e não os cortes, que promove o ajustamento orçamental.

Acresce que estas políticas permitiriam prosseguir a política de devolução de rendimentos por outra via, ou seja, permitiriam a prestação de serviços de qualidade numa lógica de provisão pública. Não é por acaso que em alguma literatura económica, os serviços públicos universais são vistos como salário indirecto.

Finalmente, estas políticas públicas permitiriam ainda atacar alguns dos fatores estruturais que estão na base do nosso endividamento externo, como o setor financeiro ou a fatura energética. Esta não é uma questão menor. O gigantesco endividamento externo da economia portuguesa, formado a partir da entrada no Euro é o principal problema da nossa economia e da sua inserção na União Monetária. Sem resolver este problema no plano europeu, a Zona Euro não é viável.

Estas políticas públicas permitiriam ainda atacar alguns dos factores estruturais que estão na base do nosso endividamento externo, como o setor financeiro ou a fatura energética. Esta não é uma questão menor. O gigantesco endividamento externo da economia portuguesa, formado a partir da entrada no Euro é o principal problema da nossa economia e da sua inserção na União Monetária. Sem resolver este problema no plano europeu, a Zona Euro não é viável.

Marisa Matias

Uma outra dimensão das enormes tarefas que temos pela frente é a legislação do trabalho. O programa de ajustamento incluiu um programa radical de desregulação das relações de trabalho, que surge como culminar de décadas de perda de direitos do trabalho em Portugal. As implicações desse programa foram gravíssimas. Portugal tem hoje um quadro de relações laborais totalmente desequilibrado a favor dos patrões. Não por acaso, a grande reivindicação das Confederações Patronais é a “estabilidade” da legislação laboral. É natural. O quadro legal hoje existente está a concretizar uma autêntica mudança de paradigma num mercado de trabalho em que a precariedade extrema e salários baixíssimos estão a tornar-se a regra.

A gravidade do que se passa no mercado de trabalho é de natureza social e económica. Por um lado, assistimos a um fenómeno preocupante que é o facto de os salários não aumentarem apesar da retoma económica. Outro aspecto preocupante é o aumento das desigualdades no mercado de trabalho, característico das relações laborais descentralizadas. Falo da desigualdade em geral, que tem depois expressões particulares como a desigualdade de género. Desde 2011, o fosso salarial entre homens e mulheres duplicou.

Essas soluções terão de dar resposta a três grandes prioridades: Relançar o investimento qualificante (…); modernizar o Estado social (…) e proteger o trabalho.

Marisa Matias

É a partir das limitações do que se fez neste mandato, e foram muitas, que teremos construir uma solução para um novo ciclo. E essas soluções terão de dar resposta a três grandes prioridades:

1. Relançar o investimento qualificante – apostar nos transportes coletivos em todo o território, nas energias renováveis, na autonomia alimentar, reduzindo os fatores de endividamento e dependência.
2. Modernizar o Estado social – recapitalizar a Segurança Social e aumentar sustentada e redistributivamente todas as pensões, reconstruir o Serviço Nacional de Saúde numa óptica de provisão pública em detrimento da contratação de privados, alargar a escola pública investindo nos meios humanos e físicos e alargando a cobertura da educação pré-escolar e criar um serviço público de habitação com financiamento do Estado e gestão pelas autarquias.
3. Proteger o trabalho – inverter a tendência de décadas de destruição dos direitos do trabalho, relançando e centralizando a contratação coletiva de forma a combater a desigualdade, combatendo efectivamente a precariedade no público e no privado, e assumindo um compromisso de longo prazo para o aumento do salário mínimo.

Muitas outras políticas ficam por definir a partir de um caderno de encargos, mas a questão fundamental é esta: conseguimos pegar no capital acumulado nestes anos e partir para um novo ciclo de entendimentos mais ambicioso? Um novo ciclo que não trate apenas de defender mínimos sociais contra o empobrecimento, mas consiga rasgar um horizonte de esperança e de desenvolvimento para um país em que permanecem ainda tantos fatores de atraso e injustiça? Sim, eu acho que podemos.

 

Reveja aqui as razões desta iniciativa: “Assumir a seriedade da Política”

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.