1.Os valores e a fundação dos EUA
Há 250 anos, em abril de 1775, começou a guerra da independência dos Estados Unidos da América (EUA) com uma vitória dos colonos durante as batalhas de Lexington e Concord no Massachusetts. Aí começaria um percurso em que treze colónias conseguiriam a independência a 4 de julho de 1776. Na véspera desse dia, foi debatida e aprovada a Declaração da Independência em que proclamaram solenemente considerar «estas verdades como auto evidentes: “que todos os Homens são criados iguais, que são dotados pelo Criador de certos direitos inalienáveis e que, entre estes, estão o direito à vida, à liberdade e à busca da felicidade”».
Um dos meus Founding Fathers favoritos, o advogado, 1.º Vice-Presidente e 2.º Presidente dos EUA, John Adams, no dia anterior, escreveu à sua mulher, Abigail Adams, considerada por muitos uma Founding Mother, sendo mãe do 6.º Presidente, John Quincy Adams, e uma parceira com quem John Adams trocou valiosa correspondência durante as discussões sobre o sistema de governo que deveria enquadrar os EUA, falando deste dia da independência e dos “valores” da fundação americana:
«Acredito que esta data deveria ser comemorada como o dia da libertação, através de atos solenes de devoção a Deus Todo-Poderoso. Este dia deveria ser comemorado com pompa e paradas, com demonstrações, jogos, competições desportivas, salvas, sinos, fogareiros e fogos de artifício, de um lado a outro deste continente, de agora para sempre».
2. O discurso messiânico e os egos que (não) cabiam no Capitólio
No dia 20 de janeiro de 2025 (re)tomou posse o 45.º , agora, 47.º Presidente dos EUA, Donald J. Trump, com alguma pompa e circunstância, mas, devido às temperaturas geladas que apertavam a capital, dentro de portas, fazendo um discurso com toques messiânicos, mas bastante mais autocentrado do que alguns daqueles “pais fundadores” do século XVIII, que já tinham egos bastante grandes, do já referido Adams até Thomas Jefferson, passando por Alexander Hamilton, James Madison, John Marshall ou Benjamin Franklin.
Foi assim que Donald Trump discursou, comparando-se “como nunca antes” a estes nomes:
“A partir deste dia, o nosso país vai prosperar e será respeitado novamente em todo o mundo. Vamos ser a inveja de todas as nações (…). Durante cada dia do governo Trump, colocarei a América em primeiro lugar. A nossa soberania vai ser recuperada, a nossa segurança será restaurada. A balança da Justiça será reequilibrada (…). E nossa principal prioridade será criar uma nação orgulhosa, próspera e livre.
A América em breve será maior, mais forte e muito mais excecional do que nunca. Retorno à Presidência confiante e otimista de que estamos no início de uma nova e emocionante Era de sucesso nacional. Uma onda de mudanças está a varrer o país, a luz do sol está a derramar-se sobre o mundo inteiro e a América tem a chance de aproveitar esta oportunidade como nunca. No entanto, primeiro devemos ser honestos sobre os desafios que enfrentamos. Embora sejam abundantes, estes vão ser aniquilados por esse grande momento que o mundo está a testemunhar (…). Nos últimos anos, a nossa nação sofreu muito, mas vamos trazê-la de volta e torná-la grande novamente (…). Vamos ser uma nação como nenhuma outra, cheia de compaixão, coragem e excecionalismo. O nosso poder acabará com todas as guerras e trará um novo espírito de unidade a um mundo que tem sido raivoso, violento e totalmente imprevisível (…).
Seremos prósperos, seremos orgulhosos, seremos fortes e venceremos como nunca antes aconteceu. Não vamos ser conquistados, nem intimidados, não seremos quebrados e não falharemos. A partir deste dia, os Estados Unidos da América serão uma nação livre, soberana e independente (…)
O futuro é nosso e nossa Era de ouro apenas começou. Obrigado, Deus abençoe a América».
Escolhi aqui partes em português, mas saltei um excerto particularmente impressivo: «Há apenas alguns meses, num lindo campo da Pensilvânia, uma bala de um assassino atravessou a minha orelha, mas eu senti, e acredito ainda mais agora, que minha vida foi salva por uma razão: fui salvo por Deus para tornar a América grande novamente».
O “novo-velho” Presidente vê-se (ou quer que o vejamos) como um enviado e isso tem muito de assustador, mas também, paradoxalmente, pode ser uma porta de entrada para que sejam efetivamente feitas boas obras por si e pelas suas equipas.
3. A carta do Papa ao Presidente
No mesmo dia, 20 de janeiro de 2025, o Papa Francisco escreveu uma carta ao novo Presidente em que o exortava a ser inspirado, em primeiro lugar, pelos ideais que guiaram a fundação dos EUA, que fizeram desse país uma terra de oportunidades para todos, em que os pais fundadores (e os reformadores e diversos ativistas ao longo dos séculos, como Martin Luther King Jr. (MLK), cujo dia-festivo se celebrava excecionalmente no mesmo dia da tomada de posse – a próxima vez só acontecerá em 2053 – se empenharam em construir uma sociedade mais justa, em que não haja espaço para o ódio, discriminação ou exclusão. A ideia de «que todos os Homens são criados iguais, que são dotados pelo Criador de certos direitos inalienáveis e que, entre estes estão o direito à vida, à liberdade e à busca da felicidade» é uma luta constante e ainda por concretizar (foi assim em 1775 na Guerra Civil dos EUA; entre 1861 e 1865; ao longo do século XX, na luta para conseguir direitos civis através de decisões do Supremo Tribunal; ou hoje).
No entanto, as palavras-chave que o Papa Francisco escolheu sublinhar – “terra de oportunidades”, “sociedade justa, sem espaço para ódio, discriminação ou exclusão” – dificilmente podem ser lidas no mesmo sentido do discurso de tomada de posse em que apresenta uma “América Primeiro”, “inveja das nações”, tendo como prioridade ser “orgulhosa e próspera”. Essas palavras recordam mais facilmente discursos bélicos do Antigo Testamento e a imagem de uma “América Dourada” dificilmente deixa de convocar a imagem do povo desviado reunido em torno de um bezerro de ouro, um falso ídolo, como o dinheiro que pingava de alguns dos convidados de honra daquela comemoração, levando a pensar se os ideais que fundaram os EUA não estão a servir para que os mesmos se afundem em tentações, como tantos Impérios do passado.
Não gosto de ceder a facilitismos ou desesperanças e acredito verdadeiramente que “o reino de Deus não é deste mundo”, pelo que não procuro nos meus líderes orientação espiritual e considero que somos chamados principalmente a rezar pelos nossos governantes, sejam eles os presidentes das juntas de freguesia que vamos eleger em Portugal em 2025, sejam os governantes das maiores potências como Trump, Xi Jinping, Putin ou os líderes europeus que restarem das confusões políticas em que estão a Alemanha, a França ou mesmo o Reino Unido. É certo que Trump falou de MLK e prometeu lutar para concretizar o seu “sonho”.
No entanto, fiquei com ecos deste homem que me assustaram, um homem que se acredita “salvo por um deus” (aceitem-me aqui a minúscula, como não o estou a citar), e quer fechar portas aos migrantes “deixando-os no México” (numa lógica semelhante à que a União Europeia tem com a Turquia ou outros países ou o Reino Unido tenta ter com o Ruanda), repete “Drill, baby, drill!” (apelando a mais perfurações e ao fim dos “investimentos verdes” e de proteção do planeta), e busca uma relação tão privilegiada com os ricos e poderosos.
Por outro lado, ouvimos também desejos de paz (a que, muitas vezes, se chega de formas misteriosas) e de voltar a olhar para novos planetas, pondo as “riscas e estrelas americanas” no solo de Marte, lembrando o: We choose to go to the Moon dito por Kennedy (e concretizado por Nixon) há mais de 5 décadas. Vamos ver para onde vai este Presidente. Esperemos que a carta do Papa vá para o seu destino e para o seu coração.
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.