Numa noite de urgência tentei convencer uma idosa a ficar durante a noite no hospital: considerava-a frágil e tive medo pois ela iria ficar sozinha em casa durante a noite. A senhora, calmamente, diz-me: “Dra. não se preocupe, Deus está sempre comigo.” Que lição de fé e confiança, em palavras tão simples, tão seguras!
Na minha (curta) experiência de vida e profissional tenho aprendido que a doença – e sobretudo a fragilidade por ela imposta -, quando vivida sem a companhia de Deus, é vazia e difícil de compreender.
Lembro-me frequentemente da certeza daquela idosa quando contemplo Jesus nos Mistérios Dolorosos do Rosário. Ele, considerado por tantos demasiado frágil para ser o Messias e demasiado homem para ser O Filho de Deus, assume a nossa fraqueza, deixa-se condenar, é flagelado, carrega a Cruz até ao Calvário e aí expõe totalmente as nossas feridas. Na Cruz, Jesus foi (e é) homem e Deus, Filho infinitamente amado pelo Pai na dor, nas feridas, no abandono… Assim cada um de nós é, também, na doença vida digna e infinitamente amada, infinitamente vida!
“Dizer [por exemplo] que a vida é marcada pela vulnerabilidade, significa reconhecer quanto ela está exposta á possibilidade de ser ferida. Vulnus é o correspondente termo latino e (…) não alude unicamente ao que nos fere a pele, mas vivit sub pectre vulnus: a ferida que sangra oculta no coração. A vulnerabilidade é um facto total.” (nota1)
O confronto com esta realidade inerente à vida humana é um desafio não só para quem doente precisa de ser cuidado, mas também para quem cuida.
O confronto com esta realidade inerente à vida humana é um desafio não só para quem doente precisa de ser cuidado, mas também para quem cuida.
Na doença, física ou mental, ligeira ou muito grave, súbita ou crónica sentimo-nos, muitas vezes, menos vivos, menos dignos de viver. Ao experimentar com a Sua vida esta condição, Jesus diz-nos que, mesmo quando não conseguimos andar, falar ou escrever, quando precisamos que nos deem banho ou de ajuda para comer, não somos menos vida, não somos menos dignos do Amor. Ele, que nos criou e nos gerou, que ama cada um desde o seio materno, ama infinitamente também na doença.
Para o familiar, o amigo, o cuidador, a doença é desafio a suportar com paciência a fraqueza do próximo. Quantas vezes sofremos ao ver o sofrimento do outro? Quantas vezes a incapacidade do outro nos faz esquecer da sua história de vida, da sua humanidade? Porque não nos reconhece, porque não se lembra de nós, porque já não consegue falar… Também aqui Jesus tem uma palavra para cada um de nós: Não estás sozinho. Deixa que os teus braços sejam os meus braços, que seja Eu a cuidar através de ti.
A nossa sensação de insuficiência no cuidar, a nossa debilidade exposta na doença são uma força maior do que qualquer outra porque têm a força de Deus. Quando sou fraco, então é que sou forte (2 Cor 12,10). Reconhecer esta realidade é dizer como Jesus na Cruz: Pai, abandono-me a Ti, cuida de mim.
“O Deus que se pôs ao nosso lado não veio tirar-nos a inadequação, a fragilidade, o limite, mas libertar-nos do medo que tudo isto exerce em nós, para que não sejamos esborrachados sob este peso enorme.”(nota2) Por isso não consigo esquecer as palavras daquela doente numa vulgar madrugada de inverno: palavras que carregam o peso de alguém que se reconhece frágil mas se abandona na certeza de que com Deus continua a viver. Como a procelária, que, como diz Sophia, “faz da insegurança a sua força”.(nota3)
Notas:
1.José Tolentino Mendonça, Vulnerabilidade e graça em https://www.imissio.net/artigos/53/2883/vulnerabilidade-e-graca-por-tolentino-mendonca/
2. Paolo Scquizzato, O elogio da imperfeição – O caminho da fragilidade
3.Sophia de Mello Breyner Andresen, Procelária em Obra Poética III
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.