Cem anos do nascimento de D. Luís Gonzaga Ferreira da Silva

Neste centenário, um artigo de Isabel Veiga de Miranda, médica ginecologista que em 1992 delineou e coordenou um projeto de Cooperação Sanitária no Niassa. Sentiu-se sempre muito apoiada material e espiritualmente por D. Luís.

Neste centenário, um artigo de Isabel Veiga de Miranda, médica ginecologista que em 1992 delineou e coordenou um projeto de Cooperação Sanitária no Niassa. Sentiu-se sempre muito apoiada material e espiritualmente por D. Luís.

No primeiro centenário do nascimento de D. Luís Gonzaga Ferreira da Silva sentimos o imperioso dever de proclamar, com todas as nossas forças, as maravilhas que o Senhor Nosso Deus nele operou e que a sua total disponibilidade ao Espírito fez dele o evangelizador perfeito, testemunha corajosa e fiel do seu encontro pessoal com Cristo, vivendo até ao extremo ao serviço do povo, paupérrimo, despojado e mesmo perseguido em terras de Moçambique.

Aqui lembraremos apenas a sua pessoa e alertamos para a próxima publicação de um livro, compilação de testemunhos de quem com ele viveu de muito perto e por ele se deixou marcar profundamente.

Luís Gonzaga Ferreira da Silva nasceu a 2 de abril de 1923, em Rebordões, na casa que tinha pertencido à bisavó Joana e depois aos avós maternos Joaquim e Margarida. Foi o quinto dos 13 filhos do casal Gracinda Alves Carneiro e Domingos Ferreira da Silva. Família com profundas raízes cristãs e fortes testemunhos de fé autêntica, como foi o caso do seu avô materno que arriscou a prisão efetivada no Forte de Caxias ao tentar evitar que, em 1910, os revolucionários republicanos levassem preso o pároco.

Não foi fácil a vida do casal Domingos e Gracinda iniciada durante a Primeira Guerra Mundial. Com um filho já nascido e um segundo a caminho, o pai Domingos foi mobilizado e partiu para França onde foi gravemente ferido nas trincheiras. Socorrido num hospital de campanha inglês veio depois convalescer para o Porto.

Ambos com uma fé inabalável e sólida piedade, souberam sempre ultrapassar as dificuldades com uma enorme confiança em Deus. Nas Suas paternais mãos colocavam toda a sua vida na persistente oração familiar diária.

Ambos com uma fé inabalável e sólida piedade, souberam sempre ultrapassar as dificuldades com uma enorme confiança em Deus. Nas Suas paternais mãos colocavam toda a sua vida na persistente oração familiar diária.

Foram abençoados com 13 filhos e, embora duas filhas tivessem falecido na primeira infância, ambas na mesma semana, com tosse convulsa, tiveram a graça de ver consagrar 9 dos 11 restantes, 5 na Companhia de Jesus e 4 na Congregação Irmãs Teresianas. Num clima de trabalho árduo, sensatez e honestidade a toda a prova educaram sempre os filhos com grande ternura e firmeza.

Foi neste alfobre fecundo que se desenvolveu o pequeno Luís Gonzaga, criança terna e muito traquina que procurava constantemente brincadeiras arriscadas, colocando frequentemente em perigo a sua integridade física, mas cujas consequências suportava estoicamente para não dar parte de fraco nem faltar aos seus deveres.

Terminada a escola primária seguiu o exemplo dos dois irmãos mais velhos e entrou no seminário menor dos jesuítas, onde foi crescendo em estatura, sabedoria, mas também em travessuras que quase motivaram a sua expulsão. Graças às orações da mãe e à proteção do seu patrono onomástico, o Espírito Santo, que sopra onde quer, virou o jovem Luís Gonzaga que se convenceu ser tempo de lutar por um ideal mais sério e acabar com as travessuras.

Estava programada continuar a sua formação na China, mas as condições políticas obrigaram a adiamento por um ano, período em que integrou a equipa fundadora do Colégio S. João de Brito.

Em setembro de 1939 entrou no noviciado no Convento da Costa em Guimarães e em 1944 prosseguiu com a filosofia, em Braga. Estava programado continuar a sua formação na China, mas as condições políticas obrigaram a adiamento por um ano, período em que integrou a equipa fundadora do Colégio S. João de Brito. Em novembro de 1948 parte, enfim, para a China em companhia do P. Benjamim Videira Pires. Esteve na missão de Shiuhing a aprender chinês. Em outubro de 1949, na sequência da expulsão dos missionários estrangeiros, foi transferido para Macau e esteve na residência de Nossa Senhora de Fátima e, em 1950, inicia os estudos de teologia em Roma onde foi ordenado sacerdote em 11 de julho de 1953.

O P. Luís Gonzaga permaneceu mais um ano na Gregoriana de Roma, no estudo da Teologia, e no ano seguinte fez a Terceira Provação na Irlanda. Em 1955 foi para Moçambique, então como pároco de Nossa Senhora de Fátima na cidade da Beira, onde, pela sua facilidade em falar mandarim, levava como missão evangelizar também a grande comunidade chinesa que ali habitava. No dia 22 de abril de 1961, o P. Luís Ferreira da Silva assumiu o cargo de superior da Missão de Boroma, missão histórica da Companhia de Jesus em Moçambique, na atual diocese de Tete.

Em 3 de setembro de 1963, o P. Luís GonzagaFerreira da Silva é nomeado Superior da Missão de Lifidzi, sempre na diocese de Tete. Em 29 de setembro de 1968 é nomeado reitor do Seminário do Zóbue e Vigário Geral da diocese de Tete.

No dia 10 de novembro de 1972, o P. Luís Gonzaga Ferreira da Silva é eleito pelo Papa Paulo VI segundo Bispo de Vila Cabral (mais tarde Lichinga). Recebe a ordenação episcopal no dia 17 de dezembro desse ano e no dia 20 dá entrada como novo bispo da sua diocese.

Aqui desenvolve um trabalho pastoral inigualável, abrangendo o diálogo inter-religioso, combate à pobreza em áreas como a educação e desenvolvimento serviço aos refugiados, saúde, nomeadamente combate à lepra onde se empenha de tal modo que lhe foi atribuído o prémio Internacional Follereau-Damien 2008. Quando, em 2003, se tornou Bispo Emérito, D. Luís voltou a integrar uma comunidade jesuíta. Depois de muitos anos, voltou de novo à sua amada Missão de Lifidzi, e aí manteve uma intensa atividade pastoral, visitando e celebrando nas comunidades da Paróquia do Domwe.

Viveu os últimos anos da sua vida em missão, com uma enorme simplicidade e dedicação. Faleceu em Lifidzi no dia 7 de agosto de 2013.

Aqui desenvolve um trabalho pastoral inigualável, abrangendo o diálogo inter-religioso, combate à pobreza em áreas como a educação e desenvolvimento serviço aos refugiados, saúde, nomeadamente combate à lepra onde se empenha de tal modo que lhe foi atribuído o prémio Internacional Follereau-Damien 2008.

 

Testemunho da Irmã Amália Maria Saraiva Monteiro
Irmãs Reparadoras de Nossa Senhora de Fátima

Pedem-me um testemunho do Senhor D. Luís e é como se estivesse diante do Evangelho e tivesse de o comentar em poucas linhas. Impossível. Poderei dizer palavras, ideias, relatar factos, talvez pretender dizer em pouco o imenso e o infinito. Porque D. Luís era imenso, na sua estatura humana e espiritual, na sua grandeza ética e moral, na sua inteireza, na sua simplicidade e extrema pobreza, na sua cândida alegria, no seu total desprendimento de tudo, na sua paternal forma de acolher… e fica tanto por dizer, porque D. Luís não cabe nos comuns perfis de personalidade. Era maior muito maior e, contudo, tão simples, tão sóbrio, tão discreto que, se tivesse de o definir numa única virtude, seria humildade. Era tão genuíno, tão verdadeiro, tão igual a si próprio que nele a humildade é a verdade. D. Luís é D. Luís. E tenho a convicção que cada pessoa que com ele conviveu e muito particularmente o seu povo do Niassa sabe que D. Luís é D. Luís.

Único, inimitável na radicalidade da sua vida e na força do seu espírito movido pelo Espírito de Deus. Nele era tão visível o Evangelho de Jesus que inspirava reverência e ternura. Infinita foi a sua ação apostólica e missionária. Poderia dar pinceladas, tentar aproximações, mas jamais abarcaria a multiplicidade de projetos, a mundividência da sua intervenção pastoral, missionária, caritativa, litúrgica, ecuménica, cultural, toda ela empenhada na promoção humana, no desenvolvimento da pessoa toda e de todas as pessoas. Todos, sem exceção, estavam na objetiva amorosa de D. Luís, tanto para lhes saciar a fome como para os formar e educar, criando as condições necessárias. Lembro as crianças penduradas no muro da Casa Episcopal a colher as folhas da sebe para matar a fome, nunca as afastou. Nunca saberemos até onde foi a sua generosidade, o que sabemos é que nada tinha de seu. Era tudo para todos.

As escolas diocesanas de vários níveis de escolaridade espalhadas pelo Niassa revelam o quanto se interessava pela educação do povo como caminho para o desenvolvimento e a paz que sempre promoveu e cultivou entre diferentes grupos étnicos e religiosos. Pai para todos sem excepção. Nesta impossibilidade de dizer D. Luís, quero apenas relatar um facto. No primeiro Natal que passei no Niassa, D. Luís convidou-me para ir com ele celebrar a missa de Natal. Lá fomos por entre aldeias e estradas de matope sem fim. Era longe. Quando parou o carro diante de uma palhota tínhamos à nossa espera três adultos e três crianças, uma delas de colo. Saudámo-nos. Depois dos cumprimentos o Senhor D. Luís entra na palhota e começa a preparar-se para celebrar. Eu entro e sento-me à espera e este compasso de espera foi um dos momentos mais interpeladores e impressionantes que vivi em Moçambique e marcou a minha vida. Observo a palhota tão tosca, tão desajeitada, tão pobre… não era só pouco, era também desprovido de toda e qualquer beleza. Naquele cenário que não havia sido preparado, mas foi escolhido, tinha diante de mim um homem de Igreja, um bispo que no dia de Natal tinha uma palhota por catedral e meia dúzia de pessoas e crianças por assembleia. O despojamento pleno, sem artifícios, sem alarde, sem microfone. A pobreza material e humana era tão extrema que impressionava, questionava, arrepiava. Que homem é este? Que lugar é este? E todo o Evangelho era a resposta.

D. Luís tinha entregue a sua vida a Deus na mais rigorosa identificação com o Seu Filho Jesus. Entendi que estava na gruta de Belém. Que tinha diante de mim um príncipe da paz e da caridade e que o NATAL estava a acontecer ali e eu estava a participar nele em direto. D. Luís celebrou a eucaristia com aquela dignidade que transportava consigo, que era ele mesmo, como se estivesse no mais belo templo. Dele transparecia uma alegria que me comovia. D. Luís estava feliz ali, tinha todo o Céu dentro de si. Naquele lugar periférico e sem adorno acendeu-se uma luz maior que tudo iluminou. Foi um momento único que tive o privilégio de partilhar.

Até hoje a minha gratidão é imensa por tanto que vivi e aprendi naquela missa com aquele testemunho de pastor inteiramente identificado com o seu Senhor, inteiramente dedicado aos mais pobres dos pobres. Naquele dia consolidou-se dentro de mim a convicção que já tinha que D-. Luís era santo e mesmo sem que ele o soubesse estimava-o e respeitava-o como tal. Até hoje.

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.