A sugestão de Paulo Guerra

A escolha do juiz desembargador é o livro "Histórias de silêncio num mundo de gritos". Uma obra sobre crianças e sobre o sofrimento profundo em que vivem aquelas que não têm amor.

A escolha do juiz desembargador é o livro "Histórias de silêncio num mundo de gritos". Uma obra sobre crianças e sobre o sofrimento profundo em que vivem aquelas que não têm amor.

Os olhos de Olga

A propósito da Obra «Histórias de silêncio num mundo de gritos», publicado em 2019 pela Fundação CEBI

 

1.      Li-as de um gole só.

Sofregamente.

Como se não houvesse mais histórias no mundo.

Há muito que soletro o verbo de Olga Fonseca.

Reconheço-o.

À distância, como marca na água que persiste em não me deixar.

José Saramago disse que os livros deviam ser vendidos com uma cinta a dizer:

“ – Cuidado, tem uma pessoa dentro!”.

Estas Histórias de silêncio num mundo aos gritos deviam ser vendidas com uma cinta a dizer: “- Muito cuidado, tem várias pessoas dentro!”

Que, no fundo, se resumem a uma – a própria autora, dona dos silêncios que teima em calar e dizer em voz alta.

Ela acredita.

Acredita que basta escutar o mar e as suas vagas. E a voz do coração, do afecto maior de que se vestem os seus dias e as suas noites, a cuidar de tantas crianças do Mundo.

Basta meditar na pausa do vento, na direcção dos rochedos – esses que abarcam as canoas da bravura -, a norte, a este, a oeste ou a sul dos afectos.

Ela, que fala com o tempo, acredita na voz do seu azul, nas almas que dançam, nas paredes nuas da ventania.

Ler estas histórias de água doce e de olhar tão tristemente belo, tão velho que se fez novo, tão novo que se quer velho, com todo o seu ritmo e musicalidade, sabe a maresia, daquela brisa fresca de que se fazem os poemas interditos, as histórias menos felizes de uma dúzia de crianças que, por quererem ser poema, merecem tanto ser felizes.

A sua escrita é carnal, sofrida, viral.

Contendo pedaços de gente, coleccionando pedaços de tempo.

Como bem nos lembra Emília Martins: «São muitas as personagens que nos fazem pensar. Em cada instante, antes do pano se fechar».

Neste palco da vida onde cada momento é, para sim, uma passagem construída de pilares singulares.

Porque este livro fala de vozes de crianças. Daquelas que, com nome, viveram histórias sem nome. E estes infantes sofreram tanto na alma e no corpo. O meu desejo é que elas possam dizer: «O meu passado familiar não tem necessariamente de determinar o meu futuro».

2.      Singulares estes rostos.

Porque este livro fala de vozes de crianças.

Daquelas que, com nome, viveram histórias sem nome.

E estes infantes sofreram tanto na alma e no corpo.

O meu desejo é que elas possam dizer: «O meu passado familiar não tem necessariamente de determinar o meu futuro».

Mas quem não recordar o passado está condenado a repeti-lo!

Porque embora ninguém possa voltar atrás e fazer um novo começo, qualquer um pode começar agora e fazer um novo fim…

Este estatuto “maior” que a 1ª Infância tem de conquistar é defendido por investigadores tão conceituados como Brazelton e Greenspan (2002) que afirmam:

“A primeira infância é simultaneamente a fase mais crítica e a mais vulnerável no desenvolvimento de qualquer criança. A nossa investigação, bem como as de outros, demonstra que é nos primeiros anos de vida que se estabelecem as bases para o desenvolvimento intelectual, emocional e moral. Se não for nessa fase, é certo que a criança em desenvolvimento pode ainda vir a adquiri-las, mas a um preço muito mais elevado e com hipóteses de sucesso que vão diminuindo à medida que decorre cada ano. Não podemos negligenciar as crianças nesses seus primeiros anos de vida”.

A construção de um projecto educativo para os espaços onde se educa uma criança exige, assim, “que se considere as crianças e seus profissionais como seres históricos, criadores de cultura e sujeitos de direito. É preciso enfrentar a realidade. Mascará-la ou ignorá-la é fugir ao compromisso e continuar com medidas paliativas”.

E a forma como a infância é definida num determinado momento histórico influencia a forma como se entende o que é ou não abusivo.

Como diria Loyd De Mause, «a história da infância é um pesadelo do qual só recentemente começamos a acordar. Quanto mais longe vamos na história, mais baixo e deficiente é o nível de cuidados para com a infância, maiores são as probabilidades de morte, abandono, espancamento e abuso sexual…».

3. Ora, todas as crianças precisam de colo.

De muito colo.

Mesmo contra a opinião de muitas avós que, do alto das suas experiências maternas e avoengas, vão opinando que colo a mais faz mal.

É da natureza humana a precisão de vinculação.

A um outro.

A alguém que tem de ser capaz de amar e cuidar de uma criança como ela merece, de acordo com os cânones expostos nas Magnas Cartas da infância, todas iluminadas pelo espírito generoso e terno da Convenção dos Direitos da Criança, aprovada pela ONU em 1989 e logo ratificada pelo Estado Português no ano seguinte, fazendo, assim, e por isso, parte do cotejo de legislação que pode e deve ser directamente aplicada a todas as crianças portuguesas ou residentes em Portugal.

 

4.      E esse colo é dado também por Olga Fonseca.

Dá-o à Teresa, a gata borralheira, ao menino que não podia fazer nada, ao outro a quem disse que «qualquer dia é um dia bom», ao Pedro da herança, ao que procura «o meu Pai novo?», à Marta, a escolhida, ao que joga a lenga-lenga do «Um-do-li-tá, porque é que alguém me quererá?», ao que aprende sobre coisas especiais, ao Rui e aos Ruis, à Sofia dos ângulos, ao pai que amolava tesouras…

E dá-o ao «Magistrado, de sorriso a colorir a toga pesada» que «perguntava ao novo Pai se sabia que o dia em que levava aquele filho para casa era o dia em que o Papa fazia anos», ao «novo Pai, com o olhar a acompanhar as correrias do filho» que «respondia que não, com os lábios» e que «com a expressão, declarava que o que sabia era que nesse dia o seu mundo tinha ficado muito mais luminoso!».

E as lágrimas da Olga, tão perto dos seus olhos, «eram tão ácidas como as daqueles dias em que ainda estava em casa».

Olga sabe que lá fora o vento uiva uma melodia triste, demasiado repetitiva para ser levada a sério.

*

5. Sobre ela, direi:

Desde 1990, exerce funções em Psicologia, Psicoterapia clínica (crianças e adultos); é Directora do Departamento de Emergência Social da Fundação CEBI; Faz parte da Direcção e Coordenação da Casa de Acolhimento Residencial para Crianças; Faz a Coordenação e a Articulação com os Tribunais de Família e Menores, Instituto Segurança Social,I.P. e outros Organismos, na elaboração, implementação e acompanhamento de Projectos de Vida das Crianças; Faz Intervenção psicossocial com Famílias, acompanhamento Psicológico de Crianças, estudo, elaboração de Projecto de Vidas e Encaminhamentos para Adopção; Colabora com a Comissão Nacional de Protecção de Crianças e Jovens em Risco, gestão e Orientação Técnica de Equipa Multidisciplinar e gestão dos Recursos Humanos do Departamento; De 2005 a 2011, foi presidente da CPCJ de Vila Franca de Xira; Escreveu vários artigos temáticos nos meios de Comunicação Social e nos órgãos de Comunicação da Fundação CEBI; 1 Livro temático (âmbito da Adopção); Participação nas Colectâneas de Poesia – “Viola Delta” e “ No Mundo da Lua, de Ed.“ Lua de Marfim”; Autora das letras do disco “Acaso”.

6.      Ela sabe que as horas são uma só e cada dia é o mesmo.

Dobra a roupa da vida, peça por peça, como o fazia nos tempos do aconchego.

Estende-nos a mão dorida para que a apertemos, escondendo lá dentro mil abraços que distribui à saciedade.

Pensa erradamente que o comboio do seu sonho foi embora do seu sonho sem nunca ter chegado.

Faz de tudo para nos arredondar o sorriso.

Bate de frente com a verdade.

Acredita que através do olhar qualquer pensamento pode matar.

Sossega-se nos murmúrios que são aos milhares e que atropelam o sentido estrito das palavras, das suas palavras.

Beija o frio do azul matinal e o cinzento improvável das noites que venera.

Vive aprisionada nos caprichos de um corpo poema.

Pensa que não percebe de que lado está o futuro.

Escorre-lhe a tinta pelos dedos e dança livre pelas texturas do papel.

Sabe que a palavra, a sua palavra, é um projéctil que atravessa os despojados que canta em mil odes.

Acredita que na verdade escreve-se sempre a fantasia.

Vive as manhãs de Inverno que existem perdidas no meio do Verão.

Sabe, afinal, que já ninguém corta um dedo a repor uma corrente de bicicleta.

Mira os dias que são de noite por quantas luas forem paridas.

*

7. Estas histórias são fruto do seu trabalho na IPSS CEBI (Fundação para o Desenvolvimento Comunitário de Alverca) e estão à venda na dita Fundação, podendo ser adquirido online, por telefone ou presencialmente.

A sua autora sabe que, lá fora, o vento uiva uma melodia triste, demasiado repetitiva para ser levada a sério.

É que, sabem, esta dona do silêncio continua a venerar palavras!

E a amar crianças!

*

Leiam este livro.

Estes silêncios.

E estas crianças.

Para que nunca mais vos larguem…

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.