A relação entre Inteligência Artificial e Inteligência Humana

Esse entendimento mais abrangente da inteligência, que integra a condição e o sentido da peregrinação humana, é o aspecto que mais diferencia este documento dos esforços de compreensão e regulação da IA apresentados por outras instituições.

Esse entendimento mais abrangente da inteligência, que integra a condição e o sentido da peregrinação humana, é o aspecto que mais diferencia este documento dos esforços de compreensão e regulação da IA apresentados por outras instituições.

Acerca da recente publicação de: Antiqua et nova

 

Publicado no passado dia 28 de Janeiro, em memória litúrgica de S. Tomás de Aquino e sob os auspícios do Papa Francisco, Antiqua et Nova apresenta uma reflexão sobre a relação entre Inteligência Artificial (IA) e Inteligência Humana. Fruto do labor conjunto do Dicastério para a Doutrina da Fé e do Dicastério para a Cultura e a Educação, o texto considera os mais recentes avanços tecnológicos à luz da dignidade humana. Ao longo de 117 parágrafos, que aguardam tradução para o português, são desenvolvidos organicamente diversos pontos recorrentes nas encíclicas, discursos e mensagens em que o Santo Padre vem abordando as oportunidades, riscos e desafios da IA. Procedendo de uma reflexão antropológica com base na revelação cristã, as suas diretrizes éticas para o desenvolvimento, uso e integração de IA, revestem-se de valor capital para religiosos, leigos e não religiosos.

O documento promove uma visão integral da inteligência humana. Retoma os conceitos aristotélico-tomistas de razão (ratio) e de intelecto (intellectus), componentes indissociáveis do discernir, julgar e agir humanos (§14), salientando que a inteligência não se reduz a processos lógico-matemáticos incluindo dimensões corpóreas, relacionais e morais. A inteligência humana é afirmada como indissociável do propósito e da busca pela verdade, elementos que não podem ser replicados pela IA, pois estão ligados à experiência vivida. Como tal, “moldada por uma miríade de experiências vividas na carne” (§31), a inteligência humana surge sempre já sob o modo do propósito, respondendo ao chamamento à verdade que dá forma a cada vida individual. Disposições como a poesia e o amor, emergentes do encontro e do cultivo da vida, revelam que, mesmo quando dá mostras de “esprit de finesse”, “a inteligência nada é sem deleite” (Claudel), cristalização poética da doutrina de Aquino que havia já sido subscrita por Dante, “il sommo poeta” (§27). Esse entendimento mais abrangente da inteligência, que integra a condição e o sentido da peregrinação humana, é o aspecto que mais diferencia este documento dos esforços de compreensão e regulação da IA apresentados por outras instituições.

Antiqua et Nova subscreve o destaque do catecismo e do magistério católicos quanto ao papel da ciência e da técnica como parte integrante da “colaboração do homem e da mulher com Deus no aperfeiçoamento da criação visível” (§§ 2, 37). Em linha com as disposições acerca da tecnologia contidas na Gaudium et Spes, também a IA não deve ser considerada um fim em si mesma, mas posta ao serviço da pessoa e comunidade humanas, na procura de “maior justiça, fraternidade mais extensa e maior ordem nas relações sociais” (§38ss).

A reflexão sobre a ética da IA proposta em Antiqua et Nova responde pois à chamada de Deus a “cultivar e cuidar” a Casa Comum. Como tal, deve envolver não só os criadores e designers da tecnologia, mas todos os que participam no circuito mais largo da inteligência algorítmica – indivíduos, famílias, sociedade civil, empresas, instituições, governos e organizações internacionais -, subscrevendo o princípio da subsidiariedade (§§ 42; 110). Sendo certo que nenhuma tecnologia é axiologicamente neutra, não é menos verdade que a demissão do uso responsável de uma tecnologia relacional como a IA seria uma recusa da dignidade própria da liberdade humana (§111). Mas assumir uma tal responsabilidade implica reconhecer os limites da IA, evitando uma dependência excessiva ou uma visão determinista da tecnologia.

Com base nesta compreensão, o documento propõe uma abordagem prudencial em relação à IA, distanciando-se tanto de visões catastrofistas como de obstinadas utopias tecnocráticas. Percorrer essa via media implica rever criticamente ideias feitas quanto às implicações sociais e políticas da disseminação de IA no quotidiano, atentando ao modo como a mesma pode complementar as práticas humanas, sem se conformar à automação das suas faculdades e tarefas, nem perder de vista o seu propósito. Alerta assim contra a tendência de antropomorfizar a IA, ressaltando que a mesma “deve ser tomada como o que é: um instrumento, não uma pessoa” (§59), contrariando a tendência a passar da atribuição metafórica de intencionalidade e capacidades subjetivas à crença numa efectiva subjetividade. Este ponto é crucial, pois a percepção errónea de uma imanência subjetiva pode levar a uma confusão conceptual e à delegação excessiva de decisões às máquinas correlativa do descurar do aperfeiçoamento de pessoal e social.

Neste contexto, as universidades Católicas devem afirmar-se “como grandes laboratórios da esperança nesta encruzilhada da história”, prosseguindo o legado de reforço mútuo entre fé e ciência (§83). Esse contributo à implementação de aplicações e usos salutares da IA poderá florescer se criar efectivas condições para o espírito crítico e a criatividade.

Neste contexto, as universidades Católicas devem afirmar-se “como grandes laboratórios da esperança nesta encruzilhada da história”, prosseguindo o legado de reforço mútuo entre fé e ciência (§83). Esse contributo à implementação de aplicações e usos salutares da IA poderá florescer se criar efectivas condições para o espírito crítico e a criatividade.

Um dos pontos mais interessantes do documento diz respeito ao modo como a IA pode contribuir para libertar o humano para funções superiores de real abertura e acolhimento da singularidade do outro. Isso é notório na apresentação das oportunidades abertas pela integração da IA nas relações clínicas e pedagógicas (§§71-76; 77-84). Contudo, a par das significativas contribuições da IA para a prevenção, diagnóstico, aplicação e avaliação de tratamentos, trajeto que ainda agora se inicia, subsiste o risco de modelar tais tarefas à automação do cuidar, isto é, uma demissão do cultivo das virtudes intrínsecas da arte médica e de seu cuidar responsável. Caso se acomode aos simulacros de personalização, à adesão obstinada à automação do acesso e transmissão dos conteúdos, também a educação arrisca um empobrecimento dos seus vínculos constitutivos, atrofiando as aspirações e potencial dos educandos. Como resultado da cedência às crescentes pressões de produtividade, eficiência e funcionalidade, a delegação massiva de tarefas formativas a aplicações digitais, cada vez mais precoce, pode contribuir para a interiorização de relacionamentos de tipo transaccional, desprovidos de uma genuína mutualidade. Como se sublinha no texto: “apesar da utilização de uma linguagem antropomórfica, nenhuma IA pode sentir genuinamente empatia” (§61).

No âmbito social e económico, Antiqua et Nova destaca o impacto da IA no trabalho e na organização produtiva, advertindo quanto ao risco de uma valorização puramente instrumental do ser humano, relembrando que a dignidade da pessoa não está condicionada à sua capacidade produtiva (§34). Alerta-se também para os perigos da desinformação e manipulação nas redes, problemática que vem assumindo temas de relevância crescente na sociedade pós-digital (§85-89).

O documento destaca a necessidade de salvaguardas legais para garantir a transparência, privacidade e explicação dos processos algorítmicos. A regulação é vista como um complemento essencial à capacitação das pessoas para o uso crítico da tecnologia, contrariando a conformação algorítmica da pessoa e a perpetuação de preconceitos e discriminação (§90-94).

O documento destaca a necessidade de salvaguardas legais para garantir a transparência, privacidade e explicação dos processos algorítmicos. A regulação é vista como um complemento essencial à capacitação das pessoas para o uso crítico da tecnologia, contrariando a conformação algorítmica da pessoa e a perpetuação de preconceitos e discriminação (§90-94).

Um enquadramento ético robusto torna-se imperativo para garantir que a IA contribui para o bem comum, sem comprometer a autonomia e a liberdade humanas. Antiqua et Nova sublinha os desafios da IA na governação, na segurança e nas relações internacionais, alertando para o perigo da concentração de poder tecnológico em poucas mãos e os riscos da sua instrumentalização política (§98-103). É dado especial destaque à mobilização bélica da IA, sendo que, como salientava o Sumo Pontífice, no seu Discurso na Sessão do G7 sobre Inteligência Artificial, a 14 de Junho passado, “nenhuma máquina deveria escolher tirar a vida a um ser humano” (§99).

Adverte também a Nota quanto ao espectro da idolatria –“presunção de substituir Deus por um artefacto de fabrico humano” (§105)-, pois apesar de poder contribuir para uma melhor gestão dos recursos da Casa Comum – contributo urgente naquela que é a nossa crise ecológica -, a IA permanece na imanência da operação numérica, privada do sopro da vida, de uma história pessoal e de abertura ao transcendente.

Na sua reflexão final o texto convoca a uma verdadeira sabedoria, que não se deixa petrificar diante da assombrosa torrente de dados, nem cede à ânsia de poder e controlo que o seu domínio pode permitir. A sabedoria do coração decorre de um reconhecimento do valor incondicional do outro que se atualiza na caridade, sendo ela que vem a “iluminar e orientar a utilização desta tecnologia centrada no ser humano”, com vista à “felicidade e comunhão com Deus” (§116).

Contribuição indelével da Santa Sé para iluminar os debates e decisões vindouros sobre IA, Antiqua et Nova é pautada por uma reflexão ética abrangente que procede do valor incondicional da dignidade humana. É um chamamento ao discernimento, à responsabilidade e à busca de um desenvolvimento tecnológico verdadeiramente humano. O que resulta é uma autêntica ordenação da IA, capaz de servir o bem integral da humanidade sem sacrificar os valores fundamentais que sustentam a vida social e espiritual.

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.