Liberta de obrigações profissionais e com a rotina quotidiana alterada por força de circunstâncias pessoais, ansiosamente aguardadas e muito celebradas, aproveitei madrugadas mal dormidas para visionar alguns filmes e séries, com destaque para duas produções baseadas em obras diametralmente distintas, quer pelo género, quer pelo contexto em que foram realizadas.
O filme resulta da adaptação de um clássico – Mulherzinhas – da autoria de Louisa May Alcott, que retrata a vida de quatro irmãs, com interesses e destinos diversos, que tiveram que suportar a partida do pai para a guerra, o que serviu até de motivo para reforçar a união entre elas e a mãe na luta que foram obrigadas a travar para ultrapassarem as dificuldades acrescidas do dia-a-dia. A obra, de cariz autobiográfico, foi durante muito tempo recomendada para as adolescentes, pelo facto de transmitir um conjunto de valores que remetem para a importância do casamento e da maternidade. É, afinal, uma obra à medida da mulher de oitocentos…
Considerada inferior ao homem, tanto física como intelectualmente, teoria subscrita até por médicos de então, a mulher do século XIX não tinha muitas opções de vida. Julgava-se, ao tempo, que se contrariasse a sua natureza, sujeitava-se a vários perigos, como, por exemplo, ser afetada por doenças do foro mental, sendo a histeria a mais conhecida. Algumas mulheres que se atreveram a violar cânones estabelecidos acabaram internadas em hospitais psiquiátricos.
Uma das personagens de Mulherzinhas revela já um certo desejo de fuga, que não foi totalmente materializado, e que representa a própria Louisa May Alcott através do seu gosto pela escrita. É uma curta viagem ao século XIX, que rapidamente me levou para o século XXI.
Arriscando comparar o quotidiano a um palco, o certo é que, hoje, a mulher é chamada a representar diferentes papéis, que não terão de ser incompatíveis, se lhe for dado o cenário adequado.
A série A Criada, também baseada numa história verídica, apresenta o drama de uma jovem que foge, com uma filha, de uma situação de violência doméstica. Expõe, de forma crua, as fragilidades da assistência social norte-americana e, sobretudo, a falta de solidariedade para com as mulheres mais expostas à miséria.
Através desta produção televisiva é possível observar que, apesar das conquistas alcançadas pela mulher e para a mulher ao longo do século XX, há um caminho íngreme e sinuoso que ainda terá de percorrer e que reflete alguns dos embaraços que a própria sociedade lhe coloca, designadamente a falta de solidariedade, o individualismo exacerbado, a indiferença, que, muitas vezes, se agravam quando na condição de mãe.
A jovem desta série enfrenta diversos desafios para manter a sua filha e não perder a sua guarda. Com esse propósito, empenha-se na procura e na conservação de meios de subsistência, que parecem estar sempre em risco por causa dos cuidados que a filha requer. Apesar do carácter romanceado da obra e desta se reportar a um contexto específico, que não é o português, há um conjunto de aspetos que merecem uma reflexão mais alargada.
As conquistas já alcançadas não libertaram a mulher-mãe de discursos e contrariedades que ainda lhe pesam, designadamente em termos laborais. No mundo ocidental, a quebra demográfica é um grave problema social, com repercussões em diferentes domínios, que todos reconhecem e que cada país vai tentando resolver à sua maneira. Julgamos que a sua resolução poderá passar, ainda que não só, pela revisão da forma de se olhar a mulher, em particular na sua condição de mãe e de trabalhadora.
Arriscando comparar o quotidiano a um palco, o certo é que, hoje, a mulher é chamada a representar diferentes papéis, que não terão de ser incompatíveis, se lhe for dado o cenário adequado. Afinal, vai longe o século XIX, quando a mulher só podia ter um papel.
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.