Há quase dois mil anos, em Jerusalém, teve lugar o julgamento mais famoso da história. Tão famoso que ainda hoje ecoa na arte, na literatura, em filmes e séries, no debate político. Como quase todos os casos de justiça mais badalados, este não é um exemplo de como buscar a justiça, mas sim uma injustiça flagrante: a condenação de um inocente à morte, um galileu chamado Jesus. Este juízo pode ser visto como um drama em três atos: uma reunião do Sinédrio; o interrogatório de Jesus (e de Pedro); o processo judicial diante de Pilatos.
Comecemos pelo primeiro ato, a reunião do Sinédrio. O sinédrio é um tribunal rabínico, e em Jerusalém está o Grande Sinédrio, constituído por cerca de 70 juízes, uma espécie de Supremo Tribunal, que é o defensor dos interesses da nação de Israel (proteger o povo e a Terra Prometida; salvaguardar o culto, o Templo) e interlocutor privilegiado do poder imperial. A ressurreição de Lázaro fez com que mais e mais pessoas se juntassem ao movimento de Jesus, que nesse momento se dirigia para Jerusalém para celebrar a Páscoa. A cidade está a abarrotar com peregrinos, e o Sinédrio teme que a esperança messiânica em torno deste Galileu, que vem perturbar o «status quo», resulte em distúrbios públicos. Perante a dissensão, entre os membros reunidos, quanto ao que fazer em relação a Jesus, Caifás apresenta o argumento determinante: «nem vos dais conta de que vos convém que morra um só homem pelo povo, e não pereça a nação inteira» (Jo 11,50).
Uma vez detido Jesus no Monte das Oliveiras, segue-se o interrogatório diante do Sinédrio, cujo centro é a questão fundamental do cristianismo: quem é Jesus? E ao mesmo tempo que Ele se vai assumindo como o Messias na casa do sumo-sacerdote, no pátio dessa mesma casa, Pedro, o primeiro a reconhecê-lo como tal, nega conhecê-lo por medo a represálias. À coragem serena de Jesus diante da cólera e da violência das autoridades judias, contrapõe-se a tibieza de Pedro, que confrontado com as perguntas de uma porteira, e de servos e guardas num pátio, sacrifica a verdade para salvar-se a si mesmo.
Quando sacrificamos a verdade às nossas conveniências, às nossas ideias, às nossas preferências, semeamos injustiça. E se semeamos injustiça, poderemos colher outra coisa que não seja injustiça?
Por fim, chegamos ao palácio de Pilatos, o praefectus romano da Judeia com uma missão clara: manter a ordem. Este episódio com o galileu é uma maçada indesejada. E numa conversa com o réu, longe do olhar público, faz a famosa pergunta: «o que é a verdade?» (Jo 18,38) Será que ele deseja saber a resposta? Será honesta a sua pergunta? Ou não passa de um cético – ou um cínico – que pretende desviar a conversa para um beco sem saída? A sua decisão mostra a sua intenção: para ele, manter a ordem é mais importante do que a verdade. Mesmo quando consulta a multidão para saber qual dos condenados libertar – Barrabás ou Jesus –, não está preocupado com a verdade: é manter a ordem pública o que mais interessa. E por isso dá o poder ao povo, que sacrificará a verdade no altar de um plebiscito.
Sacrificar uma vida para salvar a nação. Sacrificar a verdade para salvar a minha vida. Sacrificar uma vida para manter a ordem. Sinédrio; Pedro; Pilatos. Em lugar de se perguntarem pela verdade de quem era aquele homem, estes protagonistas preferiram perguntar-se pelo que lhes era conveniente. Quando sacrificamos a verdade às nossas conveniências, às nossas ideias, às nossas preferências, semeamos injustiça. E se semeamos injustiça, poderemos colher outra coisa que não seja injustiça?
Quando a justiça deixa de ser instrumento da verdade, nega-se a si mesma e torna-se o seu oposto. Quando a justiça deixa de ser instrumento da verdade, o resultado é o Ecce homo, o apropriado título que inconscientemente Pilatos dá a Jesus quando o apresenta à multidão, depois de este ter sido humilhado com uma coroação de espinhos, flagelado e torturado: Ecce homo, «eis o homem» (Jo 19,5); é o retrato-espelho da desfiguração do humano quando se dá o eclipse da verdade. Quando a pergunta pela verdade desaparece, destruímos qualquer hipótese de justiça.
Jesus mostra-nos o caminho justo do Justo: diante dos que conspiram, oprimem e julgam, há que entregar-se à verdade, com coragem e serenidade. Podemos construir os mais belos modelos legais, norteados com os princípios jurídicos mais apropriados; podemos favorecer o comércio justo nas nossas compras; podemos encontrar melhores leis laborais; podemos fomentar melhores práticas na regulação dos bancos. Se não nos entregamos totalmente à verdade, não haverá justiça. Se não nos convertemos, e se não chamamos outros à conversão, em lugar de um mundo justo, criamos um mundo de Ecce homo’s.
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.