Valor Universal

É necessário, todavia, relembrar que também são valores judaico-cristãos os que alicerçam a Carta das Nações Unidas, fundadas ao sabor do dito de S. Mateus: “faz aos outros o que gostarias que te fizessem a ti”.

“Nós, os povos das Nações Unidas, decididos a preservar as gerações vindouras do flagelo da guerra que, por duas vezes no espaço de uma vida humana, trouxe sofrimentos indizíveis à humanidade; a reafirmar a nossa fé nos direitos fundamentais do homem, na dignidade e no valor da pessoa humana, na igualdade de direitos dos homens e das mulheres, assim como das nações, grandes e pequenas; (…) o progresso social e melhores condições de vida dentro de um conceito mais amplo de liberdade; e para tais fins a praticar a tolerância e a viver em paz uns com os outros como bons vizinhos; a unir as nossas forças para manter a paz e a segurança internacionais; a garantir (…) que a força armada não será usada, a não ser no interesse comum; (…) resolvemos conjugar os nossos esforços para a consecução desses objetivos.

Em vista disso, os nossos respetivos governos, (…) adotaram a presente Carta das Nações Unidas e estabelecem, por meio dela, uma organização internacional que será conhecida pelo nome de Nações Unidas.”

Assim começa a Carta das Nações Unidas. Assinada a 26.06.1945, em S. Francisco, compromete-se com propósitos reais para um mundo que se levantava de uma profunda e devastadora ferida, ambicionando juntar nações com nações. A vida humana é estipulada como o valor universal.

Assinada a 26.06.1945, em S. Francisco, compromete-se com propósitos reais para um mundo que se levantava de uma profunda e devastadora ferida, ambicionando juntar nações com nações. A vida humana é estipulada como o valor universal.

Parece difícil, porém, concretizar o objetivo das Nações Unidas. A união das pessoas implica superar singularidades e idiossincrasias, integrando e aceitando o que é único.

Hoje é dia 02 de Outubro. Passaram 640 dias sobre a invasão de um país soberano por outro país soberano. Perspetiva-se um segundo Natal em Guerra.

Por vezes ouço amigos dizer estarem fartos de ouvir falar na Guerra e nos seus intervenientes. Que eles são todos iguais, com agendas escondidas, fazendo equivaler atacante a atacado. Satura-se do tema guerra. O que é tópico de conversa que vai gerando modorra no calor e conforto de um lado do sofá, tem significado morte e terrível perda para tantos agora sem sofá.

Não ter ou perder a capacidade de chorar e de se compadecer, ser indiferente, é, creio, uma das coisas que vai desligando a pessoa da sua humanidade. Banalizar a situação e suspirar de alívio porque não nos acontece a nós. Satisfeitos com a nossa vida, impermeabilizando-nos ao desespero a que pode chegar a vida do nosso semelhante.

Não ter ou perder a capacidade de chorar e de se compadecer, ser indiferente, é, creio, uma das coisas que vai desligando a pessoa da sua humanidade.

O castelo de Guimarães. O Sameiro, o Bom Jesus de Braga. Os Clérigos, o Mercado de S. Bento, o Douro. A Universidade de Coimbra, o Portugal dos pequenitos. Os moliceiros em Aveiro. O templo de Diana. Lisboa, a cidade das sete colinas, salpicada de cacilheiros no Tejo, animada de vida e luz. Turistas, paz e conforto por todo o lado à nossa volta…

O que seria vivermos um Blitz nestas e noutras cidades e lugares portugueses? E, a juntar a uma crueza deste calibre, ficar indiferente? Kiev tem sido bombardeada violenta e quotidianamente. E, do mesmo modo, muitas outras cidades ucranianas, cujas imagens lembram fotografias de uma destruída Dresden, na Alemanha, cruelmente bombardeada quase no fim da II Guerra Mundial.

Será lícito dizer que o agressor agride porque é provocado? Quem se sente acossado e pretende justificar a sua má conduta escuda-se atrás de uma resposta de auto desculpabilização, convencendo-se até de estar a ser piedoso ou de invocar um deus que está do seu lado. Mas nada pode justificar o grau de crueza a que esta guerra chegou, nomeadamente as violências praticadas contra tantos inocentes, que vêm a sua vida coartada, amputada, destroçada… Ninguém ganha com a guerra.

A ilusão de um, ou uns quantos, inflige há mais de um ano um caudal de disrupção e destruição na vida de milhares, colocando o mundo num suspenso sobre o que está e pode ainda vir a acontecer.

Tanta perda de tantas vidas humanas. Tanto rasgão na Carta das Nações Unidas.

O aumento do custo de vida em todo o planeta, o embargo do fundamental comércio dos cereais, bombardeados e destruídos no porto de Odessa, quando são essenciais para tanta gente, agravando o problema exponencial da fome no mundo, em que uma exausta OMS apela à doação urgente de alimentos em África. O aumento do número de desalojados e de emigrantes que são forçados a fugir das suas casas. O desvio, necessário, mas terrível, de tantos milhares e milhões de euros para reforço de armamento, incontornável depois do galopante retorno de uma nova guerra “fria”, sem perspectiva de atenuação.

E, em simultâneo, milhares e milhares de pessoas, a tentarem atravessar o Mediterrâneo depois de meses a – literalmente – atravessar o deserto, em busca de uma vida melhor. Tantas vidas perdidas e tanto exacerbar do “aqui é para mim, fiquem lá na vossa terra…”

A fustigada Síria. Os contrastes “das Arábias”, entre os extravagantes nativos e milionários “expats” contrastando radicalmente com os ‘mão-de-obra’ baratos. A perseguição, isolamento, desigualdade de tratamento das mulheres no Afeganistão ou no Irão, tão maltratadas e apartadas dos mais fundamentais direitos. A perseguição a cristãos no Paquistão ou na Índia. E tantos outros lugares do mundo carregados de paradoxos. Também aqui em Portugal.

É tão importante ler, reler e sublinhar a Carta das Nações Unidas. Tentando não perder tempo na atribuição de culpas ou no julgamento de quem faz e não faz o quê – por tentador que isso seja, mas promovendo e amplificando com a nossa vida, no nosso dia-a-dia, a verdadeira paz e um diálogo sempre aberto, respeitador e integrador para o que é diferente. Paz na aceitação de cada pessoa, e também na condenação não violenta do que não está certo. Sem medo. Paz na ação.

É tão importante ler, reler e sublinhar a Carta das Nações Unidas. Tentando não perder tempo na atribuição de culpas ou no julgamento de quem faz e não faz o quê – por tentador que isso seja, mas promovendo e amplificando com a nossa vida, no nosso dia-a-dia, a verdadeira paz e um diálogo sempre aberto, respeitador e integrador para o que é diferente.

Sempre sem violência. Tentação sempre presente, e desculpada com lógicas de “olho por olho” ou de “só assim nos ouvem e se consegue mudar alguma coisa”. Mas sempre inaceitável.

Não é possível, porém, pactuar com o que consideramos injusto e incorreto. Tem de se escolher, pois não vale tudo e o seu contrário. Invasores e invadidos, perseguidores e perseguidos não é tudo a mesma coisa.

É legítima a aspiração de uma qualquer minoria em ser compreendida e aceite. Como é legítima a aceitação e compreensão de quem pertence à maioria. Em nenhum caso, porém, se poderá aceitar a opressão e tentativa de silenciamento, da expressão respeitadora da visão de cada um. Para isso, há que promover um espaço de genuíno diálogo e aceitação mútuas, sem juízos apriorísticos entre as diferentes visões.

No Oriente há países que não permitem que se desrespeitem os valores por que se regem. Será que isso confere ao Ocidente o direito de os ajuizar como rígidos e inflexíveis? Não permitir, será sempre diferente de punir, prender ou matar, claro está. Mas até onde pode ir o aceitável, antes de se tornar inadmissível?

O Ocidente parece estar progressivamente a perder a noção do certo e errado, venerando o tudo valer, numa atitude semelhante à de alguém muito gasto que deixou de se importar com o que quer que seja….

O Ocidente parece estar progressivamente a perder a noção do certo e errado, venerando o tudo valer, numa atitude semelhante à de alguém muito gasto que deixou de se importar com o que quer que seja….

É necessário, todavia, relembrar que também são valores judaico-cristãos os que alicerçam a Carta das Nações Unidas, fundadas ao sabor do dito de S. Mateus: “faz aos outros o que gostarias que te fizessem a ti”.

No caminho que cada um tem de fazer, todos os dias, há que tomar o cuidado de combater no âmago a facilmente instalável indiferença. Evitar fazer zapping para pôr a guerra no ‘off’, pois infelizmente ela continua ‘on’, mesmo que se mude de canal. Tal como a sempre presente fome e morte em tantos locais, ou a perseguição injusta e exclusão de tantas pessoas.

No mínimo deveríamos calar o fastio e disfarçar o bocejo – talvez não seja preciso falar sempre ou dizer tudo – por respeito a quem deixou de ter, não tem ou nunca teve lugar onde pousar a cabeça?

A vida como o maior bem. Não apenas a de cada um para si próprio, mas a de todos, por todos.

“Todos, todos, todos…” ouvíamos noutro contexto há bem pouco tempo…

Por mais voltas que se dêem, talvez o mais grave problema nasça no facto de esta mesma vida ainda não ter sido assumida, por cada uma e todas as Nações do Mundo e em cada Nação por cada uma e todas as pessoas, como Valor Universal.

 

Bibliografia

Charter of the United Nations and Statute of the International Court of Justice. San Francisco. 1945.
Lc. 6, 31
Mt. 7, 12
Mt. 8, 20

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.