Há poucos dias atrás, o Papa Francisco escreveu-nos uma carta, por ocasião do 107º dia mundial do migrante e do refugiado (26 de setembro). Com a epígrafe «Rumo a um nós cada vez maior», Francisco remete o nosso pensamento para a história das nossas separações, para a construção do “outro”, para a construção artificial de uma alteridade excludente. Permitam-me que use uma citação desta carta: “Os nacionalismos fechados e agressivos (cf. Fratelli tutti, 11) e o individualismo radical (cf. ibid., 105) desagregam ou dividem o nós, tanto no mundo como dentro da Igreja. E o preço mais alto é pago por aqueles que mais facilmente se podem tornar os outros: os estrangeiros, os migrantes, os marginalizados, que habitam as periferias existenciais”.
Este, que é um texto belíssimo de convocação para o “nós”, é, simultaneamente, um texto angustiante neste final de 2021. No momento em que muitos de nós podem já tirar a máscara que nos cobriu os sorrisos durante meses, não podemos fazer mais do que tristemente reconhecer que o mundo pós pandemia não é menos desigual do que o que deixámos no passado recente. Penso, desde logo, no nacionalismo das vacinas que não conseguimos combater. Portugal, com 85% da população vacinada, e o Sudão do Sul, com cerca de 1% da população vacinada, são uma metáfora das linhas abissais que dividem o mundo. Quando os sistemas farmacêuticos, o sistema económico e os sistemas de saúde a Norte se associam para salvar o mundo da pandemia não estão, não estiveram, e não se antecipa que estarão, a pensar no Sudão do Sul e nos seus 11 milhões de habitantes.
O português e secretário-geral da ONU afirmou recentemente que “a igualdade da vacina é o maior teste moral perante a comunidade global.” Segundo António Guterres, “o progresso na vacinação tem sido extremamente desigual e injusto”. Já no longínquo fevereiro de 2021, Guterres chamava a atenção para o facto de (apenas) 10 países terem administrado 75% de todas as vacinas, enquanto mais de 130 Estados não terem (à data) recebido uma única dose. Entretanto muita coisa mudou. O norte global luta contra negacionistas científicos que não permitem que a taxa de vacinação se aproxime de 100%. O sul global luta pelo direito de acesso às vacinas sobrantes. Guterres, de voz embargada, pede – a favor da humanidade inteira o direito a vencer o vírus. Guterres, que se tornou consciência do humanismo global, pede ao G20 menos de um quinto do que a Austrália se prepara para gastar em submarinos. Com este dinheiro poderíamos vencer esta batalha atual. Com os submarinos talvez venhamos a perder batalhas futuras. É uma parábola do tempo presente, em que vice-almirantes se agigantam quanto aos Bojadores da nossa costa, mas o mundo resiste a tornar o Antropoceno o período da vida na terra em que nascemos, vivemos e morremos como iguais.
Segundo António Guterres, “o progresso na vacinação tem sido extremamente desigual e injusto”
Volto a Francisco em mais uma citação. “Na realidade, estamos todos no mesmo barco e somos chamados a empenhar-nos para que não existam mais muros que nos separam, nem existam mais os outros, mas só um nós, do tamanho da humanidade inteira”. A angústia de que vos falava no início deste texto tem aqui o seu epílogo. Talvez nunca como hoje sentimos que o Papa é um de nós. Talvez nunca como hoje tenhamos a sensação de que António Guterres fala em nosso nome. Talvez saibamos agora que no passado não fomos uma só humanidade, que as cores, as religiões, ou o puro egoísmo, nos separaram e nos iludiram. Talvez nem fôssemos capazes de ter uma visão do todo que é o barco que habitamos e em que percorremos as galáxias sem fim. Hoje, temos consciência de que Francisco é a voz que importa escutar. Em cada fronteira em que estamos vigilantes há um muro que nos torna dissemelhantes. Em cada nacionalismo que construímos há um humanismo que fica por realizar. Há um “nós” em mim que nos une, mas que precisa de ser alimentado por ações concretas. Proponho apenas uma.
Mais de 6,6 mil milhões de dose de vacinas Covid-19 foram administradas à data em que escrevo este texto. Aceitando que a investigação que levou à vacina tem que ser paga (é a única forma de continuarmos a ter ciência), creio que estaremos de acordo que, nesta altura, esta dívida já estará regularizada. De agora em diante, as grandes farmacêuticas, produtoras destas vacinas, vão, apenas, adicionar lucro ao lucro gerando uma ainda maior desigualdade de rendimentos global. (A título de exemplo, segue a nota de que só uma das empresas farmacêuticas envolvidas na produção de vacinas se prepara para um lucro de 33,5 mil milhões de dólares de lucro em 2021!) Nem as farmacêuticas nem o mundo precisam de mais lucro nem de mais desigualdade. Proponho que estas farmacêuticas ofertem as patentes à ONU para que esta, em nome de todos nós, possa cumprir o ideal para que foi criada. Não proponho um levantamento de patentes. Não proponho que os países que podem pagar o deixem de fazer. Proponho que esse lucro, de alguns, passe a ser usado ao serviço do bem comum. É, provavelmente aquilo que Erik Olin Wright chamou de “uma utopia real”. Daquelas que nascem dos sonhos que nos unem aos amanhãs que cantam. Das que são impossíveis de realizar até que acontecem. Das que cumpridas mudam a própria realidade. Não vejo porque não possamos sonhar. Acredito, porém, tal como Francisco, “que este é o momento em que somos chamados a sonhar juntos. Não devemos ter medo de sonhar e de o fazermos juntos como uma única humanidade, como companheiros da mesma viagem, como filhos e filhas desta mesma terra que é a nossa Casa comum, todos irmãs e irmãos” (cf. Fratelli tutti, 8).
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.