Uma espécie de manifesto pela arte e o desporto

É por essa razão que me manifesto. Porque é desse mistério, dessas razões insondáveis, tantas vezes imperceptíveis ao nosso olhar incapaz, que a arte brota e sobrevive.

Temos muitas razões para ir a um concerto, assistir a um jogo de futebol ou ver uma exposição. Às vezes, pura e simplesmente, apetece-nos. Temos também outros motivos: querer conhecer a obra de um artista ou que a nossa equipa ganhe um jogo. São razões variadas, dependentes ou independentes umas das outras. Não interessa. O que importa é que há muitas justificações para sairmos da cama aos fins de semana, que é quando geralmente guardamos algum do nosso precioso tempo para nos “cultivarmos”, seja lá o que isso for. No fundo, sem sabermos muito bem porquê, gostamos de música, futebol, ópera ou pintura, e fazemos coisas para ir ao encontro dessa nossa característica.

O problema é que estas teses não convencem ninguém. Pelo menos não convencem os mais céticos ou os que aprofundam seriamente estas questões. As razões que nos levam aos museus nunca são razoáveis para explicar o verdadeiro valor dos museus. Da mesma maneira que dizer que queremos ir ver a vitória do Sporting ao estádio diz muito pouco. Não explica nem a mais valia da atividade em si mesma – certamente que a tem -, nem a razão de gostarmos tanto dela e de lhe dedicarmos parte do pouco tempo de que dispomos. Por que raio ficamos horas e horas numa fila interminável à porta do Madame Tussauds, em Londres, para ver bonequinhos famosos feitos em cera? Porque é que ficamos vinte minutos a ler um poema de que não percebemos patavina? Responder que é para nos dar mais cultura, conhecer a história, os nossos antepassados ou perceber melhor o ser humano é manifestamente insuficiente. Não conseguimos explicar muito bem o que é que significa ter mais cultura, nem sequer para que serve conhecer a história se estamos no presente. E acharmos que aprendemos mais sobre o ser humano olhando para um quadro é, no mínimo, irónico, quando há tantos seres humanos à nossa disposição. O facto de não conseguirmos explicar, como fazemos, por exemplo, com uma escova de dentes, qual a utilidade de uma obra de arte é, além de exíguo, uma maneira absurda para explicarmos que ela é muito importante e pode acrescentar imenso à nossa miserável vida.

É por essa razão que me manifesto. Porque é desse mistério, dessas razões insondáveis, tantas vezes impercetíveis ao nosso olhar incapaz, que a arte brota e sobrevive. E quem diz a arte diz o desporto. Acredito piamente, e por isso as comparo tantas vezes, que são ambas atividades soberanas da mais pura expressão humana. Todos nós, mais velhos ou mais novos, somos e seremos sempre casas inacabadas, sem telhado, sem chão ou sem uma das paredes que a sustém. Falta sempre qualquer coisa, não fossemos nós enganos, erros e imprecisões. Urge, assim, o aparecimento de qualquer coisa que contribua para a nossa completude, para sermos um bocadinho mais “nós”. Qualquer coisa que seja espelho – que identifica o Homem com a sua verdadeira natureza -, porta – que alarga a razão -, mas também cimento – sustentáculo de um corpo feito para a vida e para algo que a vida corriqueira não sabe bem explicar.

Urge, assim, o aparecimento de qualquer coisa que contribua para a nossa completude, para sermos um bocadinho mais “nós”. Qualquer coisa que seja espelho – que identifica o Homem com a sua verdadeira natureza -, porta – que alarga a razão -, mas também cimento – sustentáculo de um corpo feito para a vida e para algo que a vida corriqueira não sabe bem explicar.

A arte, tal como o desporto, podem ser essa tal coisa que nos aproxima de uma obra terminada, de uma casa com mobília a dar para o mar incerto. É que a arte, tal como o desporto, não são apenas atividades com capacidade para atingir o belo – o belo que acalma e carrega em si a paz. São, acima de tudo, uma mão onde o sublime pode pousar e permanecer. E o sublime é tempestade e verde prado – desconforta-nos, faz comichão, e põe-nos à roda do leme, assustados no convés, ao mesmo tempo que nos ampara e serena, numa estranha sensação física e não só. É possível, por isso, por maior que seja a solidão da nossa vida, que nunca nos sintamos sós ao pé de um livro ou diante de um jogo.

É que a arte, tal como o desporto, não são apenas atividades com capacidade para atingir o belo – o belo que acalma e carrega em si a paz. São, acima de tudo, uma mão onde o sublime pode pousar e permanecer. E o sublime é tempestade e verde prado – desconforta-nos, faz comichão, e põe-nos à roda do leme, assustados no convés, ao mesmo tempo que nos ampara e serena, numa estranha sensação física e não só.

Não sou como Heidegger. Acredito que a arte contemporânea existe e está de boa saúde. Mas tenho medo que, por exemplo, tanto a música pop como um jogo de futebol, estejam a tornar-se em formas rasteiras de ser – banais -, que, em vez de elevarem o Homem, o tornam fechado, curvado apenas diante de si próprio. Porque uma coisa é uma canção falar sobre o quotidiano, e, como dizia Chesterton, não há nada mais extraordinário do que o Homem comum. Outra coisa é substituir a arte pelo que de mais mesquinho e desinteressante tem a nossa vida. Fazer da música apenas um lamento sobre ex-relações e mensagens que trocamos com os namorados ou namoradas, fazer do palco um lugar para ostentar os nossos filhos às cavalitas, fazer de um estádio uma arena de insultos e confusões, é engraçado. Todos nós nos rimos imenso e batemos palmas. Às vezes até nos comovemos com lágrimas a sério. Tudo parece fazer parte, tudo é sentimento, tudo é emoções. Tudo parece arte, mas não é.

Uma obra de arte fala do concreto, de uma rotina simples e humana, ao mesmo tempo que convoca uma interioridade profunda, indecifrável e irrecusável. Uma obra de arte curva-nos, de orgulho ferido, e simultaneamente revela os caminhos não percorridos que cada Homem tem no coração. Tolkien, através de contos de fadas, mostrou-nos isso. Dostoiévski, por meio de vidas desastradas, iluminou o sentido de Bem que reside no ser humano. Sophia de Mello Breyner continua a revelar uma estrada incessante de busca, da matéria que vai para além da matéria. E mesmo João Luís Barreto Guimarães ou Miguel Araújo, numa poesia do quotidiano ou em canções que versam sobre o banal, convidam a uma reflexão maior, ensinando-nos, como as árvores de Daniel Faria, a incomparável paciência de procurar o alto.

A arte precisa de uma certa distância, como se alguém que não conhecêssemos falasse connosco numa língua estrangeira apenas parcialmente descortinada, mesmo que fale de nós e aconteça por nossa causa. Heidegger, e agora estou de acordo com ele, alertou-nos para este problema. Quando a obra parece dissolver todas as relações com os homens, mais obra a obra é. Somente quando está solitária, quando nos é estranha, é que irrompe no aberto. Apenas quando a obra está nesta espécie de isolamento especial, só quando contribui para distanciar a obra das pessoas ao mesmo tempo que as aproxima, é que a obra existe, é que a obra acontece e se faz verdade palpável na nossa vida.

Serve este manifesto precisamente para me manifestar por uma arte e por um desporto que proponham um encontro da realidade humana com o sublime. Uma arte que engrandeça. Um desporto que meça a distância entre o que o Homem é e o que o Homem pode ser.

 

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.