Uma educação de conveniência

A educação de conveniência emerge, de facto, como deseducação, o que leva alguns pensadores a proporem, como uma das missões mais nobres e radicais da educação, a luta contra a própria educação

Ninguém contesta a relevância da educação para formar seres humanos mais sensíveis não só ao conhecimento como também à sabedoria, à emotividade e à atenção ao outro. Com efeito, é pacífico aceitar-se que a educação nos enquadra em determinados parâmetros que a sociedade considera mais nobres e dignos de serem seguidos para que os seus membros se tornem mais preparados do ponto de vista científico e técnico, mas também mais cultos, mais solidários e mais sensatos.

Porém, nem sempre a educação que hoje temos, fortemente influenciada por tendências de outras esferas que tentam impor os seus critérios distributivos pouco consentâneos com os fins tradicionais da educação, tem cumprido a sua missão formativa em toda a sua plenitude.
Servindo-me de Clarke (2012, p. 307) e tendo presente a conjuntura atual, escrevi que a educação vive (ou sobrevive) hoje, imersa num caldeirão de ideias hegemónicas, relacionadas nomeadamente com:
– a exigência do aumento da produtividade como o último desígnio educacional e social;
– o fato de a prestação de contas, mais do que a confiança, dever ser a chave da excelência educacional;
– a excelência educacional, realizada através de combinação de mecanismos de prestação de contas gerencialista e por noções de escolha orientadas pelo mercado, ser compatível com a equidade;
– a asserção de a prestação de contas ser um assunto de eficiência técnica e não uma escolha normativa;
– a afirmação de a escolha e a diversidade serem as chaves da justiça social, recusando-se a possibilidade de algumas diferenças poderem estar ligadas às desigualdades sistémicas e às desvantagens estruturais (Estêvão, 2015, p. 20/21).

Para além destes aspetos que vêem a educação enformada por finalidades estranhas, que se coadunam pouco com a sua natureza, queria salientar, também, que esta educação, caracterizada aqui como “conveniente” ou funcionalmente ajustada, promove, coerentemente, outras ideologias de conveniência ou ideologias à solta, tão frequentes e veneradas por muitos que se interessam pela educação.
É o caso, por exemplo, das ideologias da qualidade, das competências ou da aprendizagem ao longo da vida, que, em nome da regeneração ou refrescamento da educação, tendem a transformá-la num palco banalizado de experiências mais ou menos criativas mas frequentemente pouco formativas.

Estas ideologias, com efeito, concebem os alunos como capital humano a ser rendibilizado ou então como seres que devem ser bem motorizados para a velocidade dos tempos atuais; eles devem ser empreendedores, portáteis, plásticos, competitivos e, no final, mais vendáveis. Para tal, devem transformar-se também, não em aprendentes cidadãos, mas em cidadãos aprendentes, para que o desafio da competitividade nunca se perca.

Neste sentido, a educação conveniente pode induzir, ou induz mesmo, uma certa perversidade.

Neste sentido, a educação conveniente pode induzir, ou induz mesmo, uma certa perversidade. Esta tendência agrava-se quando se transformam as organizações educativas em mcEscolas; quando as práticas escolares se tornam, ainda que de modo oculto, discriminatórias e seletivistas; quando se estimulam as pedagogias fast food; quando se promovem os valores de plástico ligados à ideologia do mercado e a outras ideologias de conveniência; quando se valoriza, de modo quase exclusivista, a formação técnica e tecnológica, em detrimento de uma formação integral; quando se incute a passividade e a docilidade acrítica; quando se prioriza a cultura escolar homogeneizadora das diferenças como condição de convivência dentro da escola; quando se desiste da luta contra o insucesso, o abandono e a violência; quando se estimula apenas uma justiça escolar meritocrática; enfim, quando se desvitaliza a educação, retirando-lhe o seu potencial libertador.

Neste cenário, a educação de conveniência emerge, de facto, como deseducação, o que leva alguns pensadores a proporem, como uma das missões mais nobres e radicais da educação, a luta contra a própria educação para, deste modo, se recuperar o seu sentido mais puro e primordial. Exigem, por isso, uma educação que mobilize uma outra afeição, uma outra relação crítica, uma outra justiça educativa, um novo jeito de cuidar dos outros, uma outra boniteza, tal como defendia Paulo Freire.

Poderíamos realçar, no entanto (e para evitarmos os críticos), que a educação conveniente também é compassiva, também fala dos desajeitados, dos inadaptados, dos incompetentes. Ela prevê também vias alternativas (como o ensino profissional), que tratam do problema dos “resíduos” ou dos “inertes”, poupando à sociedade recursos e ficando esta mais limpa. Ou seja, a educação conveniente aprimoraria e daria mais utilidade aos humanos, pelo que deveria impor-se naturalmente, sem cedências a romantismos que lhe concedem um poder quase salvífico mas completamente fora da realidade.

Coerentemente, então, uma educação conveniente para os tempos de mercado como os atuais deveria remover das suas finalidades a utopia da emancipação ou da cidadanização crítica e restringir-se à concretização da performatividade competitiva, entendida “como uma tecnologia, uma cultura e um modo de regulação” (Ball, 2003, p. 216).

Para terminar, não há propriamente uma educação, mas várias educações. Qual a que possui um potencial mais redentor? Defendo que uma educação mais militante, que combata, entre outras lutas, as fantasias do mercado e os seus efeitos sociais e educativos, deixando de ser uma espécie de cinderela dos tempos anormais como os de hoje, com o pé sempre pronto a ajustar-se às medidas do sapato, ajudada pelas magias da fada-madrinha do mercado.

E isto requer, mais uma vez, que a educação não se confine a ser um simples palco para representações estranhas à sua alma e aposte antes numa alternativa que exercite as razões e os afetos, a racionalidade e a razoabilidade, a justiça e o cuidado, o conhecimento e o reconhecimento, a crítica e a solidariedade, o saber e a sabedoria.

 

Referências:
Ball, Stephen (2003). Ball, Stephen (2003). The teacher’s soul and the terrors of performativity. Journal of Education Policy, 18 (2), pp. 215- 228.
Clark, Matthew (2012). The (absent) politics of neo-liberal education policy. Critical Studies in Education, 53(3), pp. 279-310.
Estêvão, Carlos V. (2015). Tempos anormais e novas fantasias. Novas tendências em direitos humanos, justiça e educação. Revista Portuguesa de Educação, vol.28, nº2, Braga, pp. 7-29.

Fotografia de Kimberly Farmer – Unsplash

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.