Uma cultura de compromisso como caminho para a coesão social

Todos estes pontos refletem uma preocupação com a dignidade do trabalho e a necessidade de uma abordagem que equilibre eficiência económica com justiça social no contexto das rápidas mudanças a que estamos a assistir.

Reportando-nos às últimas legislativas e passado que está um período eleitoral intenso e participado onde, pela primeira vez desde há longos anos, vimos subir o número de votantes e baixar os preocupantes níveis de abstenção, e ao final de pouco mais de dois meses de um novo Governo, para além da espuma dos dias, começamos a ver alguns sinais de diálogo com sindicatos e parceiros sociais.

Caminhar para um clima de paz social é sempre um processo difícil, seja qual for o Governo, mas este em particular vê a sua tarefa ainda mais dificultada depois dos autênticos leilões a que assistimos durante a campanha eleitoral, por parte das várias forças políticas a prometer tudo a todos, na tentativa de agradar, seduzir e captar o voto das várias classes profissionais que foram sendo consecutivamente relegadas para segundo plano. Mas à medida que vamos conhecendo a real situação das contas públicas, e a consequente dificuldade de acomodar a crescente despesa pública, constatamos a encruzilhada em que nos encontramos.

Um outro elemento adicional é a inesperada maioria parlamentar que se formou entre esquerda e extrema-direita e que, a avaliar pelo episódio da aprovação do final das Ex-Scut, da aprovação da descida do IRS bem como de próximos episódios que já se antevêem, promete dificultar ainda mais os planos orçamentais e a própria sustentabilidade das contas públicas.

Voltando ao mundo do trabalho, vejamos, por exemplo, a situação dos profissionais de saúde, dos professores e mais recentemente dos militares e das forças e serviços de segurança. As suas aspirações e reivindicações são mais do que justas, mas é crucial atingir uma compatibilização desse elemento de justiça social com um outro que é a nossa sustentabilidade enquanto comunidade a médio e longo prazo. É necessário chegar a compromissos.

A propósito de compromissos, de quem os poderá negociar e assumir, julgo ser relevante fazer uma reflexão do que é hoje o papel dos sindicatos e das associações profissionais.

Na verdade, o que temos assistido ao longo do tempo é a uma autêntica erosão, uma perda de influência destas estruturas institucionais de representação dos trabalhadores em detrimento de estruturas inorgânicas que vão surgindo e ocupando o seu espaço. Isso é mais evidente no caso dos professores e dos polícias. Esta questão dos interlocutores, dos seus interesses e agendas é determinante numa perspetiva de coesão social e de responsabilização de todas as partes que se sentam à mesa de negociação.

Na verdade, o que temos assistido ao longo do tempo é a uma autêntica erosão, uma perda de influência destas estruturas institucionais de representação dos trabalhadores em detrimento de estruturas inorgânicas que vão surgindo e ocupando o seu espaço.

As questões da organização do trabalho e das relações laborais sempre mereceram uma atenção particular por parte da doutrina social da Igreja, com efeito desde o seu princípio com a Encíclica «Rerum Novarum» que pode ser traduzido como “sobre as coisas novas” de 1891. Desde sempre que a Igreja se tem empenhado em refletir e responder aos desafios sociais emergentes de cada época.

E se olharmos para as reflexões e as advertências daquela encíclica de Leão XIII, vemos que o que era apontado no passado mantém uma atualidade notável ao falar por um lado da exploração dos trabalhadores e por outro do problema, não menos grave, que é o da instrumentalização ideológica das justas reivindicações do mundo do trabalho.

Com efeito, aquela encíclica é considerada um dos elementos fundadores da sistematização do pensamento social católico, sendo ainda hoje um pilar fundamental. E é antes de tudo uma defesa da inalienável dignidade dos trabalhadores, à qual se junta uma afirmação da importância do direito de propriedade, do princípio de colaboração entre as classes, dos direitos dos mais fracos e dos pobres, das obrigações dos trabalhadores e dos empregadores, do direito de associação, apenas para referir alguns.

Também a primeira encíclica social de João Paulo II, comemorativa dos 90 anos da «Rerum Novarum», intitulada «Laborem Exercens», que pode ser traduzido como “do exercício do trabalho”, retoma essa preocupação ao abordar a problemática central da questão social que é o trabalho humano e a forma com é realizado. Mais, enriquece uma visão personalista do trabalho, dos significados e das tarefas que o trabalho comporta. Porque o trabalho, como questão central de toda a questão social, condiciona o desenvolvimento não só económico, mas também cultural e moral, das pessoas, da família e de toda a sociedade.

A importância dos sindicatos é reconhecida de uma forma muito clara ao declarar: “As organizações sindicais, perseguindo o seu fim específico ao serviço do bem comum, são um fator construtivo de ordem social e de solidariedade e, portanto, um elemento indispensável da vida social.”

A importância dos sindicatos é reconhecida de uma forma muito clara ao declarar: “As organizações sindicais, perseguindo o seu fim específico ao serviço do bem comum, são um fator construtivo de ordem social e de solidariedade e, portanto, um elemento indispensável da vida social.”

É por isso interessante ver que, volvidos mais de 100 anos, o diagnóstico mantém-se efetivo e as prioridades também. Vejamos o capítulo VII do compêndio da doutrina social da Igreja, intitulado “As ‘Res Novae’ do Novo Mundo do Trabalho”, que aborda profundamente as mudanças contemporâneas no campo laboral. Estas vão desde o impacto da globalização e a transformação radical da organização do trabalho, permitindo novas formas com os seus efeitos sociais e relacionais, até à fragmentação e flexibilização dos ciclos produtivos, exigindo uma adaptação cultural e uma redefinição dos sistemas de proteção ao trabalhador, aumentando a necessidade de flexibilidade laboral e adaptabilidade na gestão.

No fundo, trata-se de uma mudança do paradigma em que assistimos à transição de uma economia baseada na indústria para uma economia centrada em serviços e onde a inovação tecnológica continua a criar tipos de empregos e extinguindo ou alterando outros, trazendo para cima da mesa preocupações e incertezas sobre a segurança no emprego, o desemprego estrutural e os próprios sistemas de segurança social existentes.

O trabalho informal ou a nova Gig Economy onde a expansão do setor informal ou submerso, não deixando de constituir crescimento económico, levanta sérios problemas éticos e jurídicos, chegando a resultar até em condições de trabalho degradantes.

Aqui também a doutrina social da Igreja propõe soluções que, com as devidas alterações e contextualizações, podem servir de inspiração para o caminho a trilhar. Desde logo ao enfatizar que as mudanças não são inevitáveis ou determinísticas, mas antes dependem de escolhas e ações humanas; que o homem deve ser o protagonista, moldando o trabalho de uma forma criativa e responsável para promover o bem-estar humano e social.

Mas também através da necessidade de superar conceções meramente economicistas do trabalho que são vistas como inadequadas para enfrentar as realidades atuais. A análise deve ir além de meras categorias económicas para abordar necessidades mais profundas do ser humano. Aponta o caminho da solidariedade e integração de perspetivas para o desenvolvimento de novas formas de solidariedade e integração entre dimensões económicas locais e globais, entre velhas e novas economias, e entre inovação tecnológica e a proteção do trabalho humano.

Todos estes pontos refletem uma preocupação com a dignidade do trabalho e a necessidade de uma abordagem que equilibre eficiência económica com justiça social no contexto das rápidas mudanças a que estamos a assistir.

E regressando a Portugal, a junho de 2024, ao papel do Governo e dos Sindicatos, o caminho só por ser um: o do diálogo. Franco, aberto e consequente, de parte a parte. Uma cultura de compromisso, na certeza de que não é possível dar tudo a todos, mas que é necessário conseguir responder, de alguma forma e sempre tendo por referência a nossa sustentabilidade, às justas aspirações de todos aqueles que durante demasiado tempo foram deixados para trás.

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.