Uma coroa de cacos para tempos de incerteza

Muito me comoveu um pormenor da coroação, em Blanchernes, de João Cantacuzeno e de Irene, filha de Andrónico Assan.

Hoje, quero lembrar um poema de Konstantinos Kaváfis, poeta grego do século vinte:

 

Muito me comoveu um pormenor

da coroação, em Blanchernes, de João Cantacuzeno

e de Irene, filha de Andrónico Assan.

Como dispunham de poucas pedras preciosas

(era enorme a penúria do nosso flagelado estado),

usaram pedras falsas. Um monte de pedaços de vidro

vermelho, verde ou azul. Nada

de humilhante ou indigno

tinham para mim esses cacos

de vidro colorido. Pelo contrário, pareciam-me

um dorido protesto

contra a sorte iníqua dos recém chegados.

Eram o símbolo do que haviam devido ter

na sua coroação um Senhor João Cantacuzeno,

uma Irene, filha de um Andrónico Assan.  [1]

 

No século catorze, em Blanchernes, pequeno lugar próximo de Constantinopla, capital do Império Bizantino, havia um grande palácio imperial. Foi aí que João Cantacuzeno e a sua mulher Irene, filha de Andrónico Assan, foram coroados. Em 1351, João Cantacuzeno tinha sucedido, como regente, ao trono do império, enquanto o filho de Andrónico III Paleólogo era ainda menor de idade. Nesse tempo, a imperatriz viúva,  Ana de Saboia, insatisfeita com a nomeação, começou uma guerra civil contra João Cantacuzeno, que lançou no país a incerteza e a destruição. É neste contexto difícil que se coroam João Cantacuzeno e Irene, filha de Andrónico Assan.

Não é, no entanto, assim, que Kaváfis escolhe contar o que aconteceu. A narrativa histórica do poeta não se tece de linhas abstractas e desencarnadas, que fixam apenas a dimensão factual do acontecido. Uma história assim não seria capaz de convocar a pele, nem a memória. Em Kaváfis é diferente. Há, no seu poema, um olhar, um corpo presente, uma vida tocada.

Escutando com atenção, reparamos que a voz do poema é contemporânea daquele acontecimento. É uma voz desconhecida que, em Blanchernes, séculos atrás, se comoveu, quando a penúria era grande no seu flagelado estado. Mas difícil é não ouvir também a voz de Kaváfis, séculos depois, deixando-se comover por uma coroação antiga. O passado, quando vive através de nós, comove.

Kaváfis regressa ao olhar que viu e viveu a experiência do acontecimento, para se deter num pormenor. E notem como é preciso e indiscutível cada verso do seu poema, notem como cada palavra escolhe o caminho mais curto até ao que conta, e cada frase se despe de todos os luxos. A linguagem é pobre, mendicante. E, no entanto, quão difícil é conseguir esta concentração.

Como tão bem escreve Manuel Resende, na introdução que oferece aos poemas de Kaváfis, os acontecimentos contados pelo poeta “por assim dizer em bruto inscrevem na carne e na memória os traços mais fundos e primitivos da experiência humana”, à medida que “o tempo, com o seu passar, deixa ficar um depósito de beleza e verdade”.

João Cantacuzeno e Irene, filha de Andrónico Assan, caminham magníficos, no esplendor de que só é capaz a grande pobreza. Coroados de vidros e fragilidade, vêm ao longo da nave principal, em Blanchernes. O diamante e a pedra preciosa poderão riscar o vidro, mas nunca conseguirão este silêncio.

A coroação de João e Irene tem o ritmo certo para tempos de incerteza. O passo lento, a espera atenta, a criatividade perante a realidade magoada. Coroaram-se com o que havia, não desejando mais nada, não adiando a vida e a cerimónia para um século a vir. Não escavaram minas, de modo a recuperar a riqueza de que antes dispunham, nem lamentaram a falta de vestes mais limpas. A maior dignidade, sabiam-no, era fazerem-se coroar com os cacos do seu tempo, ainda que num dorido protesto. A coroa de cacos, pesada sobre a cabeça, confirma que o louvor é a melhor forma de enfrentar o nervo do mundo, descobrindo, nos destroços, o que ainda resta de belo ou verdadeiro.

É preciso que nos comova um pormenor da coroação, em Blanchernes, de João Cantacuzeno e de Irene, filha de Andrónico Assan. Um pormenor.

 

[1] Konstantinos Kaváfis, “De vidro colorido”, in 145 poemas, tradução de Manuel Resende, FLOP, Lisboa, 2017, p. 223. Neste mesmo livro pode ler-se também um outro poema dedicado a João Cantacuzeno, intitulado “João Cantacuzeno prevalece”, na página 219. Aconselho também a leitura do belíssimo prefácio assinado pelo tradutor (também poeta) Manuel Resende.

 

Imagem: Margarida Alvim

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.