A poucos dias do Natal somos inundados por anúncios que nos mostram que o caminho para a festa familiar se faz saindo do bulício das cidades e rumando ao espaço de conforto social e familiar que são as aldeias. Há toda uma atmosfera bucólica de carros carregados com casais jovens e muitas crianças que chegam a casas enfeitadas por símbolos antigos e onde crepita o fogo das lareiras e se sente o calor dos avós. Se a publicidade fosse perfeita sentiríamos o cheiro dos doces caseiros e ouviríamos as lágrimas de saudade pelas vidas separadas que o Natal, enfim, reuniu.
O Natal é uma festa religiosa reunida com festividades pagãs, o solstício de inverno, a que o capitalismo aproveitou por juntar uma oportunidade de consumos rituais. Por cá contínua a ser um momento importante de convívio entre gerações, de primos com primos e de criação de laços e memórias para memória futura. Bem sei que no último ano intervalámos a festa com o confinamento e que a pandemia nos tirou alguma alegria e nos privou de convívios mais abrangentes. Mas, um ano passado, o nosso imaginário continua a ser o que sempre foi. Natal rima com família como mar rima com sal.
Não quero falar de políticos, mas de uma inércia com décadas que nos rouba o passado e nos impede de pensar o futuro bucólico das aldeias nos Natais futuros.
O Natal é também, talvez sobretudo, uma festa de esperança. A natividade tem sido ao longo de séculos um motivo de criação artística que nos legou inúmeros olhares sobre o mistério do nascimento de Jesus. Eu, particularmente, gosto das natividades que nos propõem El Greco (1602-1605), Nicholas Poussin (c. 1653) ou Gaugin (1896) pela ideia de continuidade e diferença que nos propõem. Talvez de continuidade na diferença tão bem traduzida nas três dimensões que os presépios nos dão e na capacidade infinita de imaginar e criar a partir de uma ideia comum. A omnipresença da Família. A ligação à humildade e à natureza. A natividade é a origem do mundo. Somos nós que (re)aprendemos a ter esperança e a acreditar num Homem novo que nos reconcilia com a natureza, a família, a humanidade.
Nas aldeias, o Natal é mais puro. É por aqui que anda o velho Garrinchas de Miguel Torga, com a sua sacola e bordão e a sua fé transgressora. É por aqui que passa, nas palavras de António Gedeão, a Joana, que era uma menina solitária de amigos. É aqui que encontramos o Madeiro que junta no calor da noite gelada o povo em redor de conversas sobre o tudo e o nada. O Natal sem aldeias não é verdadeiramente o nosso Natal.
E, porém, creio que muitos ainda não se deram conta de que somos das últimas gerações para quem o Natal se imagina aldeão. As nossas aldeias morrem ao ritmo acelerado do nosso envelhecimento comum. Fechámos as casas, depois as escolas primárias, depois os cafés de aldeia, encerrámos as casas do povo e as juntas de freguesia, já não há postos médicos, por fim, fechámos as igrejas paroquiais. Ficaram os velhos e as velhas embrulhados em memórias dos seus avós e dos seus pais e as casas de família embrulhadas em pó e saudades de serem vividas. Creio que muitos ainda não se deram conta de que o interior vazio são aldeias sem gente. Creio que muitos não perceberam que aldeias sem gente são o fim de um tempo que não volta. Morrem as aldeias e morre uma parte do que somos.
Um Portugal sem aldeias numa demografia que primeiro, naturalmente, nos envelhece, mas que logo em seguida nos retira as memórias do Natal é o resultado de uma ausência que conjuga erradas políticas demográficas e um centralismo que já foi pandémico e que agora é endémico.
Estamos a poucas semanas de eleições legislativas, é tempo de balanço da atuação do governo atual e de lançarmos ideias, pensarmos em estratégias e traçarmos um plano para o futuro. No meu caso não pretendo cumprir este caderno de encargos. Não quero nem avaliar o governo nem trazer novas ideias. Quero falar de lugares belos, cheios de história e memória e que, por inércia e falta de estratégia, vão preenchendo os espaços com vazio e silvas. Não quero falar de políticos, mas de uma inércia com décadas que nos rouba o passado e nos impede de pensar o futuro bucólico das aldeias nos Natais futuros.
Um Portugal sem aldeias numa demografia que primeiro, naturalmente, nos envelhece, mas que logo em seguida nos retira as memórias do Natal é o resultado de uma ausência que conjuga erradas políticas demográficas e um centralismo que já foi pandémico e que agora é endémico. Nas aldeias que desaparecem deixámos vencer a demografia do vazio. Num momento em que voltamos a falar de economia circular, de transição energética, de teletrabalho e de nómadas digitais eu quero falar de um Portugal com aldeias. Quero falar de aldeias com qualidade de vida, com tecnologias 5G, com campo e memórias. Hoje, já não é possível imaginar o Natal sem prendas. No meu caso, há muito que pedi ao menino Jesus (o menino Jesus do Alberto Caeiro) para me ajudar a não deixar morrer as aldeias. Porque o menino Jesus “vive na minha aldeia, comigo. É uma criança bonita, de riso natural (…) Ele dorme dentro da minha alma. Às vezes Ele acorda de noite, brinca com meus sonhos. Vira uns de pena pro ar, põe uns por cima dos outros, e bate palmas, sozinho, sorrindo para os meus sonhos”. O menino Jesus (ainda) vive na minha aldeia porque a minha aldeia (ainda) vive.
Bom Natal.
Fotografia – Wikicommons
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.