A propósito do dia da Mulher, a secção de Justiça do Ponto SJ publicou um artigo de opinião que, alertando contra a sectarização das posições sobre um tema importante como o feminismo, apelava à autorreflexão sincera, segundo o tríptico inaciano: ver-julgar-agir. Como mulher que sou, penso ser interessante completar esse apelo com a minha perspetiva. De facto, à semelhança do que acontece com temas fraturantes como o aborto ou a política partidária, também no que concerne às questões de género é muito fácil que nos entrincheiremos em convicções inegociáveis e no confronto entre “nós” e “eles”: nós, os razoáveis, versus eles, os radicais. Ou nós, os inconformados, versus eles, os reacionários. Este tema, porém, distingue-se de qualquer outro pela forma como nos envolve desde o berço. Todos nós somos homens ou mulheres. Todos temos, pois, uma perspetiva pessoal que importa valorizar e que seria uma pena se não dialogasse com o ponto de vista do outro. Neste artigo, dirijo-me, sobretudo, a quem normalmente sente uma certa irritação perante a palavra “feminismo”. Aqueles a quem o termo remete para ideais unissexo que parecem absurdos por negarem a diferenciação biológica entre o homem e a mulher, ou para ativistas enraivecidas que prefeririam que fossem os homens a dar à luz.
Pois bem. Eu sou uma mulher normalíssima, que em pequena gostava de fadas e vestidos, e mais tarde realizou o seu sonho de casar e ter filhos. Esse percurso tão convencional, porém, conflui com naturalidade numa profunda identidade feminista que pretende lutar contra os estereótipos e a desigualdade de género. Porquê? Num país como o nosso, onde não há aqueles fenómenos que todos repudiamos sem reservas, como a mutilação genital feminina, os matrimónios infantis ou a submissão da mulher através da burka e de leis machistas, não será o feminismo uma causa dispensável ou, pior, ridícula?
A essa pergunta, podemos responder com os dados habituais que confirmam o facto que ainda há muito por que lutar em termos de paridade de direitos na nossa sociedade. As mulheres ganham, em média, 19,9% menos do que os homens, em Portugal. A diferença salarial acentua-se sobretudo a nível dos quadros superiores e com qualificações equivalentes. Podemos apresentar, também, os dados mais dramáticos da opressão sexual e do feminicídio. No nosso país, como, infelizmente, em quase todos, ainda há uma mentalidade declaradamente machista enraizada em grande parte da população, que leva a situações de assédio, abuso sexual, violência no namoro e à morte de dezenas de mulheres por ano, às mãos de ex-parceiros que não aceitam que aquela que consideram sua propriedade possa seguir o seu caminho, recusando-os.
Podemos também responder com um problema mais generalizado, com o qual todos já contactámos, certamente: a distribuição desigual de tarefas em casa, sobretudo a partir do momento em que se tem filhos. Num artigo que se tornou viral no The guardian, a ilustradora francesa Emma apresentou o conceito de “carga mental” (em inglês, mental load): em geral, são as mães, essas exímias campeãs da arte do multitasking, quem gere a vida familiar, tendo presente a lista das compras, as idas ao médico dos filhos, as atividades extracurriculares, os presentes para as festas de aniversário dos amiguinhos, as roupas que estão a ficar pequenas e é preciso renovar, entre mil outras aparentes insignificâncias que enchem o dia até ao limite. Os pais, normalmente, participam e colaboram, mas muito raramente assumem esta carga mental. A sua atenção pode estar focada nos seus deveres e responsabilidades profissionais, não havendo pressões sociais no sentido de estar sempre presente. Já no caso da mãe, espera-se dela que consiga compatibilizar a sua vida profissional com as exigências familiares sem nunca descurar as segundas. Os sentimentos de culpa que daí advêm são sentidos por todas as mães que eu conheço, começando por mim.
Quando a minha filha mais nova tinha três anos, a sua educadora fez um cartaz para o Dia da Mãe, em que todos os meninos da sala ditaram uma frase, do género “a minha mãe lê-me histórias antes de dormir” ou “a minha mãe gosta de flores”. Sobre mim, que estava na altura a terminar o doutoramento, a minha filha escreveu: “A minha mãe adora trabalhar”. Ainda me lembro do esforço para disfarçar o embaraço e a deceção perante aquela frase. Eu sabia bem que ia buscar os meus filhos todos os dias às 17h30 como as outras mães e que íamos passear para o parque. Que lhes lia histórias e apanhava flores, e era uma boa mãe. Eu sabia que aquela frase retratava mais um aspeto positivo que a minha filha intuitivamente encontrava em mim – o facto de ter uma vida profissional que me apaixonava – do que uma falta de que se estivesse a queixar. Mas senti-me envergonhada, imaginei a censura, interpretei o olhar da educadora sobre mim. Uma reação que, estou certa, não me seria tão espontânea se fosse pai, e não mãe.
Talvez em parte por causa disso, destas expetativas sociais tão contrastantes, quanto se trata de recuperar uma vida profissional ativa depois do nascimento de um filho, a discrepância entre homens e mulheres é gritante. Recentemente, foi publicado um estudo científico acerca da situação na Dinamarca, país insuspeito quanto a questões de paridade: nele verificamos que, enquanto o salário de um homem, em média, fica constante depois do nascimento do primeiro filho, não tendo como consequência nenhuma disparidade entre homens com e sem filhos, o da mulher sofre uma queda abrupta de que dificilmente recupera, mesmo depois de vinte anos.
Por fim, podemos ainda responder de uma terceira maneira à questão acerca da pertinência do feminismo: que modelo de mulher e homem é que transmitimos às nossas filhas e filhos? Os corredores das lojas de brinquedos dividem-se entre kits cor-de-rosa que incentivam o sentido maternal, o gosto pelas tarefas domésticas e a cosmética, em contraposição a jogos para rapazes que estimulam a inventividade e o engenho. Nas camisolas masculinas os slogans apelam à coragem e à aventura, enquanto nos tops femininos, dos 6 meses aos 99 anos, só se fala em ser fofa, sexy e amorosa. Nas revistas para adolescentes nada se oferece às raparigas senão um modelo de miúda fútil cuja existência se reduz a um ideal de beleza impossível e ao objetivo de agradar aos desejos masculinos. Nos livros infantis, a oferta de heroínas femininas continua raríssima, em 50% dos livros as mulheres não falam e, das que falam, a maioria não tem aspirações pessoais e limita-se a estar à espera de um príncipe.
Felizmente, em oposição a este estado de coisas, tem-se vindo a desenvolver uma contracultura que podemos apelidar de feminista, que encontramos em filmes como o “Brave-Indomável”, cuja heroína é uma rapariga audaz que se recusa a encaixar no espartilho que lhe querem impor. A nível de literatura infantil, temos o livro “Histórias de Adormecer para Raparigas Rebeldes” que promete “histórias inspiradoras de 100 mulheres corajosas para adormecer raparigas rebeldes e acordar o mundo para a realidade”, ou ainda a coleção “Anti-princesas”, que trouxe para Portugal quatro livros argentinos acerca de heroínas latino-americanas, como Violeta Parra ou Frida Kahlo, que se distinguiram pela sua capacidade de pensar com independência e acreditar no seu poder pessoal para mudar o mundo.
Quando perguntamos à minha filha o que quer fazer quando for grande, diz que quer ser polícia. Incho de orgulho. Não porque seja uma profissão especialmente entusiasmante, mas porque me revela que tenho ali uma miúda que pensa pela sua cabeça. Que tanto se mascara de fada como de personagem do Star Wars. Que adora pôr as minhas joias mas corre de pés descalços, joga futebol e sobe às árvores. Quero que saiba que pode vestir o que quiser, ser o que quiser, casar ou não casar, ser astronauta ou bailarina.
O feminismo como causa dispensável? Nem pensar. Como causa perturbadora e erradicadora de vícios? Espero mesmo que sim.
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.