Logo no início da Quaresma, a liturgia da Igreja desafia-nos, ano após ano, a avaliar o valor e a autenticidade dos nossos ritos religiosos e práticas penitenciais. São contundentes as palavras do profeta Isaías, que coloca na boca do povo a lamentação por Deus não se importar com o jejum que pratica, nem prestar atenção aos seus atos de penitência. A razão para o desagrado de Deus é clara: essas práticas não conduziram a uma vida de maior justiça, retidão, verdade e serviço ao próximo. Uma religião sem impacto nos critérios e juízos pelos quais o crente se orienta não pode certamente agradar a Deus. Quem se aproxima de Deus, afinal o objetivo de todas as religiões, não pode deixar de se tornar mais sensível à condição do seu semelhante e de o mostrar por meio de atos concretos. “O jejum que me agrada não será ante este: quebrar as cadeias injustas, desatar os laços da servidão, pôr em liberdade os oprimidos, destruir todos os jugos?”.
A preocupação de Isaías tem sido traduzida na linguagem contemporânea da Igreja em termos de promoção da justiça. Muitos aspetos cabem aqui, desde o acesso a condições de vida dignas e um conjunto de direitos como o acesso à educação, à saúde, à habitação e aos demais direitos civis e políticos. Vivemos esta Quaresma num momento terrível nas relações internacionais, com um sem número de conflitos que se arrastam desde há anos e vários outros, demasiados, que se agudizaram nos últimos tempos. Pretendo, por isso, centrar este texto no ponto da necessidade imperiosa da promoção da paz, voltando a algumas reflexões do Papa Francisco por ocasião da Audiência ao Corpo Diplomático acreditado junto da Santa Sé para a apresentação dos cumprimentos para o novo ano, uma alocução que talvez tenha passado despercebida.
O Papa volta a usar a expressão “terceira guerra mundial aos pedaços” para descrever “o verdadeiro conflito global” que resulta de um cada vez maior número de conflitos locais, mencionando aquele que dura há décadas entre a Palestina e Israel, mas também os casos da Síria e de Myanmar, as guerras na Ucrânia, entre a Arménia e o Azerbaijão, na Etiópia, Sudão – considerada a mais grave situação humanitária no mundo atualmente -, Camarões, Moçambique, RDC, Sudão do Sul, as tensões fronteiriças entre a Venezuela e Guiana, entre outros.
Depois desta exposição não exaustiva da realidade de um “mundo cada vez mais dilacerado”, o Papa lamenta que “os acontecimentos na Ucrânia e em Gaza” demonstrem que já não se observa “a distinção entre objetivos militares e civis”, atingindo “indiscriminadamente a população civil” e denuncia com veemência: “as violações graves do direito internacional humanitário são crimes de guerra”. A juntar à exigência do respeito pelo direito humanitário, Francisco recorda um princípio basilar para um uso justificado da força militar: “Mesmo quando se trata de exercer o direito à legítima defesa, é essencial respeitar um uso proporcionado da força”. Não podemos deixar de nos interrogar aqui sobre se determinadas justificações de um uso que parece tão desproporcionado da força não levam a supor que se considera que algumas vítimas são mais dignas de serem defendidas do que outras, ou que essa suposta defesa não esteja a ser usada para esconder objetivos não confessados.
Não podemos deixar de nos interrogar aqui sobre se determinadas justificações de um uso que parece tão desproporcionado da força não levam a supor que se considera que algumas vítimas são mais dignas de serem defendidas do que outras, ou que essa suposta defesa não esteja a ser usada para esconder objetivos não confessados.
O Santo Padre denuncia depois como a corrida armamentista a que o mundo se entregou seja a causa fundamental de tantos conflitos em curso: “as guerras podem continuar devido à enorme disponibilidade de armas”, disponibilidade essa que “incentiva a sua utilização e incrementa a sua produção”. Como não considerar a acutilância destas observações quando a legião de comentadores, civis e militares, dos noticiários que nos entram casa dentro nos continua a querer convencer, com muito poucas exceções, não da urgência de encontrar vias para a negociação e caminhos de diálogo, mas sim da necessidade de deitar mais e mais armas em cima dos conflitos para alcançar a paz?
Francisco menciona depois outras causas que estão na raiz das guerras, começando pela fome. Poucas vezes, de facto, vemos um líder mundial a referir-se a este “flagelo que ainda agora atinge regiões inteiras da Terra” como um fator que suscita conflitos, mas infelizmente isso sempre aconteceu ao longo da história da humanidade. Muito relacionada com esta causa está “a exploração dos recursos naturais, que enriquece a poucos, deixando na miséria e na pobreza populações inteiras que seriam os beneficiários naturais de tais recursos”. É esta a desgraçadamente famosa «maldição dos recursos naturais», que, por exemplo no continente africano, nos leva a identificar as regiões com abundância de recursos naturais como maioritariamente aquelas onde se desencadearam conflitos e onde paradoxalmente os níveis de desenvolvimento são menos elevados. O Papa refere, por fim, que, “entre as causas de conflitos, estão também as catástrofes naturais e ambientais”, como sejam, por exemplo, as lutas pelo controlo dos recursos hídricos em regiões com regimes de chuvas cada vez mais escassos e irregulares.
Num contexto cada vez mais marcado por uma retórica anti-imigrantes, Francisco volta também a insistir que os intensos movimentos migratórios contemporâneos são em grande medida consequência das guerras, da pobreza e da exploração contínua dos recursos da nossa casa comum, que “impelem também milhares de pessoas a abandonar a sua terra à procura dum futuro de paz e segurança”.
Que saídas aponta Francisco para esta dramática conjuntura internacional? Em primeiro lugar, “o caminho da paz exige o respeito pela vida, por toda a vida humana”, e, por conseguinte, “exige o respeito pelos direitos humanos”. O Papa faz depois um veemente apelo ao diálogo, que “deve ser a alma da comunidade internacional”, e em favor do multilateralismo como via de resolução dos conflitos: “A conjuntura atual é causada também pelo enfraquecimento das estruturas de diplomacia multilateral que viram a luz depois da II Guerra Mundial”, estruturas essas que têm vindo progressivamente a encontrar-se em “risco de paralisia por causa de polarizações ideológicas, sendo instrumentalizadas por alguns Estados”.
O Papa cita então o exemplo do denominado Acordo da Sexta-Feira Santa que pôs fim aos muitos anos do violento conflito na Irlanda do Norte, pelo qual os governos britânico e irlandês, dando mostras de “paciência, perseverança e capacidade de escuta”, alcançaram uma paz que venceu as dificuldades e recompensou os sacrifícios feitos.
O Papa apela também ao diálogo político e social num “ano de 2024 que verá a convocação de eleições em muitos Estados” e aponta ainda para o diálogo inter-religioso como caminho da paz.
Estamos a percorrer um ano de preparação para o Jubileu de 2025. Francisco termina recordando a necessidade deste ano jubilar de que o nosso mundo e todos nós temos:
“Talvez hoje, mais do que nunca, tenhamos necessidade do ano jubilar. Perante tantos sofrimentos que provocam desespero não só nas pessoas diretamente atingidas, mas em todas as nossas sociedades; frente aos nossos jovens, que, em vez de sonhar um futuro melhor, com frequência se sentem impotentes e frustrados; e face à obscuridade deste mundo que, em vez de se afastar, parece crescer, o Jubileu é o anúncio de que Deus nunca abandona o seu povo e mantém sempre abertas as portas do seu Reino. Na tradição judaico-cristã, o Jubileu é um tempo de graça para experimentar a misericórdia de Deus e o dom da sua paz. É um tempo de justiça, em que os pecados são perdoados, a reconciliação permite superar a injustiça e a terra repousa. Pode ser para todos – cristãos e não-cristãos – o tempo para quebrar as espadas e delas fazer arados; o tempo em que uma nação não mais levantará a espada contra outra, nem se aprenderá mais a arte da guerra (cf. Is 2, 4).”
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.