Começo com uma notícia de 2019: o melhor resultado da extrema direita espanhola nas eleições foi nos campos de agricultura intensiva nos arredores de Almería, onde milhares de imigrantes trabalham no chamado mar de plástico que cobre, pelo menos, 17.000 hectares de terrenos à beira da exaustão ecológica. Anos de exploração superintensiva têm as consequências já esperadas.
A este modelo sem futuro de exploração agrícola, junta-se um outro fracasso de gestão de recursos humanos. Para ser suficientemente lucrativo e atrair investimento capitalista, não basta explorar intensivamente o solo e o sol: importa explorar de forma intensiva o suor dos trabalhadores. Anos de sobre-exploração de mão de obra imigrante, com salários ao nível do mínimo possível para a sobrevivência humana trouxeram a esta região milhares de seres humanos sem muito a perder e nada a ganhar, a não ser a própria sobrevivência.
Trabalhadores indiferenciados, clandestinos, na economia informal, vivem em condições sub-humanas em “pisos pateras” sobrelotados, habitando o espaço público nos poucos tempos livres disponíveis, sem acesso aos mais básicos direitos. Tornam-se, assim, o (fácil) bode expiatório para os falhanços da coesão social na região espanhola.
O que falha aqui, porém, é bem mais do que o modelo de exploração agrícola local. É toda uma conceção do mundo que estabelece a divisão entre um “nós” e um “eles”.
O que falha aqui, porém, é bem mais do que o modelo de exploração agrícola local. É toda uma conceção do mundo que estabelece a divisão entre um “nós” e um “eles”. Um modelo de desenvolvimento económico que se baseia na exploração ambiental, humana dos “nossos” recursos e que permite gerar lucros milionários que são “deles” por direito. O resultado político é a inevitável ascensão da extrema direita xenófoba com a destruição de um modelo universalista de direitos humanos. O resultado social: a perpetuação de modelos de exploração e pobreza que drena recursos humanos de países do Sul global em troca de uma mão cheia de coisa nenhuma. O resultado económico: a criação de riqueza e geração de lucro que fluirá para paraísos fiscais e que não terá qualquer impacto ao nível local.
Como sabemos, temos a nossa Almeria no sudoeste alentejano que, na sua máxima extensão e aproveitamento hidroagrícola do Mira, se aproxima em área dos 17.000 hectares da gémea andaluza. As comparações parecem, por isso admissíveis. O que separa Odemira de Almeria não é o modelo de negócio, não é o tipo de produtos gerados, não é a exploração laboral intensiva, mas tão só a sua posição numa linha de tempo de um conjunto de projetos empresariais. Enquanto Odemira só agora começa a atingir o planalto da sua exploração máxima potencial, Almeria já começa a sentir o ocaso do seu modelo de exploração. Por cá, com amplo estrondo mediático, veio à superfície o que estava escondido do olhar comum. Um amplo conjunto de empresas agrícolas, através de complexas cadeias de exploração de mão de obra imigrante, acaba por contribuir para um problema de exclusão social generalizado e, ultimamente, para um potencial problema de saúde pública.
Recuemos às causas. Quem são estas empresas? Quem são os seus proprietários? Onde estão as suas sedes sociais? Quem são os seus clientes?
Recuemos às causas. Quem são estas empresas? Quem são os seus proprietários? Onde estão as suas sedes sociais? Quem são os seus clientes? Estão os clientes informados sobre as formas de exploração laboral existentes para levar para o seu prato os frutos com que se deleitam? Para onde se exportam os produtos? Qual a pegada ecológica deste transporte? Qual a cadeia de preços entre a produção e o consumo? Onde e quem obtém mais lucros?
Passemos aos fatores de produção. Como são protegidos os solos agrícolas locais? E os aquíferos? Que tipo de pesticidas e adubos são utilizados? A agricultura intensiva raramente é ecologicamente sustentável, mas como estão a ser mitigados os riscos ecológicos? Como se protege a biodiversidade preexistente? Quantos, e que tipo de trabalhadores, estão ao dispor da produção? Há cadeias de prestação de serviço? Quais? Quantas? Como se formam?
Sabendo que numa região demograficamente envelhecida não existe mão de obra disponível, como é feito o recrutamento internacional? Que tipo de intermediários estão envolvidos neste recrutamento? Como está a ser tratado o processo de integração social de todos os trabalhadores estrangeiros e das suas famílias? Há recursos suficientes nas escolas? Possuem acesso ao sistema de saúde? Na diversidade de nacionalidades de origem presentes em Odemira são conhecidos processos de estratificação social e étnica (existência de um sistema informal de castas, por exemplo) estas questões estão devidamente enquadradas localmente? No complexo sistema de exploração que se pressente existir (auxílio à imigração; exploração laboral; exploração habitacional) há (ou estão previstos) mecanismos céleres e ágeis de denúncia que permitam às autoridades intervir? Há incumprimento das leis de estrangeiros? Há incumprimento de leis laborais? Há incumprimento de leis ambientais? Há incumprimento das leis fiscais? Existem recursos suficientes na região para verificar o cumprimento da Lei e impedir abusos?
São muitas as perguntas e poucas as respostas disponíveis. Viajamos na espuma das notícias mediatizadas e do drama instantâneo do dia anterior. Temos que olhar mais longe para ver com maior profundidade. Almeria vai à frente e é capaz de nos mostrar o caminho que Odemira tende a percorrer.
São muitas as perguntas e poucas as respostas disponíveis. Viajamos na espuma das notícias mediatizadas e do drama instantâneo do dia anterior. Temos que olhar mais longe para ver com maior profundidade. Almeria vai à frente e é capaz de nos mostrar o caminho que Odemira tende a percorrer. Assusta um pouco perceber que não estamos a ouvir a ciência nestes casos, que não estamos a escutar os cientistas. São demasiadas (e difíceis) as questões que precisam de ser respondidas com urgência e tratadas de forma definitiva. Estaremos todos, verdadeiramente interessados em elucidá-las e comprometidos para agir melhor, ou – quando passar a atenção mediática – serão estas questões humanitárias e ambientais, de novo, esquecidas?
É altura de gritar bem alto: não há futuro neste modelo de agro-negócio tal como está. A exploração de recursos e de pessoas não é socialmente aceitável, ecologicamente sustentável e economicamente viável.
É altura de gritar bem alto: não há futuro neste modelo de agro-negócio tal como está. A exploração de recursos e de pessoas não é socialmente aceitável, ecologicamente sustentável e economicamente viável. Este tipo de exploração tem que acabar nas várias odemiras onde está construído ou em construção. Não é possível achar que azeite a baixo preço, fruta fora de época em promoção ou vegetais frescos em todas as épocas do ano são produzidos sem sangue, suor e lágrimas. Não gostava que o tema desaparecesse do espaço mediático e o elo enfraquecido que são os trabalhadores migrantes voltassem a sentir a dor da solidão e de uma inexistência social. Toda esta gente é gente como nós. Olhar de longe tem a vantagem de nos permitir separar os elementos que constituem a paisagem. Não me parece possível que os frutos vermelhos não saibam agora a sangue e sofrimento.
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.