Todos os dias chegamos de viagem

O Papa continua a interpelar-nos dizendo “que o grito da terra e o grito dos pobres são só um e o mesmo”, o grito que nos transporta ao lugar onde existe privação e sofrimento. O lugar onde cada um de nós poderia estar. À viagem essencial.

Todos os dias chegamos de viagem, percorrendo a trajetória que nos leva de um dia para o outro e nos permite recomeçar. Esse tempo novo que nos é dado a cada madrugada e nos torna a todos viajantes.

Às vezes, não desfazemos a bagagem que trazemos, com a pressa de chegarmos a outro destino, ao outro dia que se aproxima, sem fazermos a pausa necessária para chegarmos mais longe. Esquecemo-nos de iniciar o percurso interior que nos salva. Acumulamos culpas, lixo emocional, hábitos que são para descartar, esquecendo que não avança quem cede sob o peso de uma bagagem demasiado pesada. Tornamo-nos pessimistas, precipitamo-nos e não nos lembramos simplesmente de abrir as mãos, para depositar com confiança o que nos pesa e que não somos capazes de suportar.

Somos peritos na pressa que nos rouba o olhar e deixamos de conseguir distinguir o que importa, apreciar o momento, fechando-nos num pessimismo persistente que nos congela e corrói. Por entre o atropelo dos dias perdemos o fio à meada, desaprendendo que não viajamos sozinhos, que Deus caminha connosco e nos deu companheiros de viagem para fazermos da vida e do mundo um lugar melhor.

Mas apesar disso, há experiências que nos transformam, que nos abrem os olhos para uma nova maneira de ver e nos fazem inaugurar ciclos novos.

Mas apesar disso, há experiências que nos transformam, que nos abrem os olhos para uma nova maneira de ver e nos fazem inaugurar ciclos novos. Pode ser um livro que nos passa pelas mãos, uma frase que fica a soar dentro de nós, alguém que nos desafia a pensar e que podemos nunca mais voltar a ver, ou um episódio que nos toca sem percebermos muito bem porquê. Somos então convidados a fazer uma viagem interior, a aprofundar, a medir e a “transgredir”. A transgredir não como quem ofende, mas transpondo o que é necessário para chegar ao outro, gerando comunhão e paz.

Estive em África há pouco tempo e sinto ainda o eco dos passos que dei, do que vi e ouvi. Uma África que nunca tinha visto antes. Um horizonte vasto, onde há ainda tanto a fazer pelos mais excluídos. Uma pobreza menos mascarada, com contornos diferentes da que vi noutros lugares.

Presenciámos o que o desespero provoca em quem nada tem, ouvimos relatos de violência pela boca de quem os viveu de perto, e na outra face da moeda encontrámos um pedaço de paraíso em ótima companhia. Experimentámos a beleza da vida selvagem, mergulhámos no azul do Índico em praias deslumbrantes, e fomos recebidos com amizade e solicitude, em família.

Um turbilhão de sentimentos que estou ainda a gerir, porque todos precisamos de tempo e de pausas para processar o que vimos e o que sentimos e a aprender a não parar apenas nas primeiras impressões. A entender o que nos está a ser dito, pedido, oferecido…a encetar o caminho da compreensão e da compaixão.

Há viagens que continuam mesmo depois de terem terminado. No fundo, sabemos que de alguma forma estamos todos interligados, e que ao debruçarmo-nos sobre os grandes temas que nos afetam a todos, chegamos inevitavelmente a um lugar comum e ao mesmo tempo sagrado, que pede de nós atenção e cuidado.

Há viagens que continuam mesmo depois de terem terminado. No fundo, sabemos que de alguma forma estamos todos interligados, e que ao debruçarmo-nos sobre os grandes temas que nos afetam a todos, chegamos inevitavelmente a um lugar comum e ao mesmo tempo sagrado, que pede de nós atenção e cuidado.

Hans Rosling, que nos deixou em 2017, dedicou os últimos anos da sua vida à escrita do seu livro ”Factfulness”. Especialista em Saúde e co-fundador dos Médécins Sans Frontières, fala-nos das tendências globais e do progresso humano, enquanto médico e humanista. Com convicção afirma que subestimamos sistematicamente o progresso que tem sido realizado no mundo. Falando do seu trabalho em Nacala, Moçambique, onde trabalhou num hospital, escreve: “não são os médicos nem as camas de hospital que salvam as vidas das crianças nos países nos níveis 1 e 2. As camas e os médicos são fáceis de contar e os políticos adoram inaugurar edifícios. Mas quase todo o aumento de sobrevivência infantil é conseguido com medidas preventivas fora dos hospitais por enfermeiros locais, parteiras e pais com educação”. (Hans Rosling,“Factfulness”, pag 139, Temas e debates Circulo Leitores).

A educação é um fator crucial que não pode jamais ser posto de lado, assim como a humildade, a empatia e o empenho de quem pretende causar impactos positivos.

Gael Giraud, jesuíta e economista, reflete há vários anos sobre as grandes questões da humanidade, fazendo a ligação entre economia, finanças e ecologia. Giraud viveu no Chade e aprendeu a compreender o extraordinário impacto da mudança climática sobre a população. A escassez de água, o avanço rápido da desertificação e as condições de vida locais fizeram-no entender que a questão do aquecimento global é uma realidade tangível.

Numa entrevista ao Vatican News, a 2 de março de 2021, ao jornalista Xavier Sartre, afirmou: “A experiência da fé cristã alimenta em mim a ‘esperança contra toda esperança’ que garante que eu não tenha – ou não tenha imediatamente – o reflexo de me esconder na negação da situação ambiental e da catástrofe em curso. Nós, cristãos, temos um papel, uma responsabilidade na resolução desta crise extremamente grave”.

Vários avanços têm sido feitos devido ao esforço e dedicação de muitos, mas há ainda muito a alcançar. É precisamente o que Gaël empreende na missão que lhe foi confiada pela Companhia de Jesus: “criar e desenvolver um centro de justiça ambiental na Universidade de Georgetown de Washington, nos Estados Unidos”.

Muitas pessoas no mundo inteiro dedicam as suas vidas em busca de soluções em prol da  humanidade. Embora o mundo enfrente desafios gigantes, foram feitos enormes progressos. A maioria das pessoas tem o suficiente para comer, tem acesso a água tratada, a maioria das crianças é vacinada e tem acesso à escolaridade. Mas devemos continuar a reunir esforços e a tentar compreender a realidade de milhões de pessoas que vivem ainda em condições de pobreza extrema, atentos aos problemas reais e à forma de os resolver. Sabemos que 800 milhões de pessoas estão a sofrer neste momento. Ao contrário das alterações climáticas, não precisamos de previsões nem de cenários. Conhecemos as soluções, “paz, escolaridade, cuidados de saúde, água potável, microcrédito…”,  mas é preciso avançar, dando os passos certos, sabendo que quanto mais depressa agirmos menor será o problema.

O que o Papa Francisco nos propõe a cada dia, com coragem e veemência, foi em parte proclamado por outras vozes, noutras latitudes. Desmond Tutu, arcebispo sul africano, anglicano e nobel da paz que nos deixou há pouco tempo, lutou toda a sua vida pelos direitos humanos. Partiu, oferecendo-nos o testemunho vivo do significado da palavra “Ubuntu”, esse sentido especial de afeto, de solidariedade e de partilha que vai mudando o mundo, quando alguém que o encarna passa por nós. A humanidade que nos liga inseparavelmente ao outro e nos permite entender que a reparação das fraturas e dos desequilíbrios é necessária e urgente.

Da mesma forma, Gandhi afirmava, “que temos de ser a diferença que queremos ver no mundo”, não apenas como um chavão, mas como uma voz a ecoar o que Cristo mostrou com a sua própria vida e nos chama a fazer. Na encíclica Laudato Si, o Papa Franci̇sco continua a interpelar-nos dizendo, “que o grito da terra e o grito dos pobres são só um e o mesmo grito”, o grito que nos transporta a cada lugar onde existe privação e sofrimento. Ao lugar onde cada um de nós poderia estar neste momento. À viagem essencial.

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.