Som da Liberdade – das conspirações à realidade

O filme tem o potencial para provocar reflexões que podem ser construtivas e valiosas, mas pode gerar, também, confusão e injustiça. Vejamos, então.

No dia 21 de dezembro, estreia, em Portugal, o filme Som da Liberdade. Trata-se de um filme que põe em cena Timothy Ballard, um agente norte americano que se dedica a identificar e deter agressores sexuais de crianças e jovens, bem como desmantelar redes de pedofilia. Inspirado numa história real, o filme é produzido pelos Angel Studios, que produziram, também, séries como The Chosen. Apesar de só estrear agora, em Portugal, o filme já chegou a vários países, desde julho de 2023, nomeadamente aos Estados Unidos, onde a crítica foi ambivalente e extremamente politizada.

i) Uma excessiva (e nociva) politização

O primeiro aspeto a destacar é mesmo esse, o da excessiva politização do filme. Para grande desgosto do realizador, Alejandro Monteverde, o filme foi associado a teorias do grupo conspiracionista QAnon, cada vez mais popular junto da extrema-direita, nos Estados Unidos.[1] Uma das teorias desenvolvida pelo QAnon assenta na ideia de que uma parte da elite global se serve de uma rede internacional de tráfico de crianças para obter um elixir de juventude, feito a partir do sangue de crianças torturadas para esse efeito. Apesar do filme não fazer qualquer referência a esta teoria, e do realizador garantir que começou a escrevê-lo ainda antes da existência deste grupo, a associação decorreu de declarações feitas pelo ator principal, Jim Caviezel: além de participar em fóruns do grupo QAnon, o ator chegou mesmo a confirmar a sua crença na teoria da conspiração descrita.

Houve uma enorme tentativa de aproveitamento político, tendo o filme sido capturado pela direita e extrema-direita norte-americanas – Donald Trump chegou mesmo a convidar Jim Caviezel e Timothy Ballard para assistirem, com ele e outras figuras políticas, a uma sessão privada para exibição do filme. Numa sociedade tão polarizada como é a dos Estados Unidos, o reverso da medalha também se verificou: o filme foi rejeitado e criticado por grande parte da esquerda. A crítica do filme deixou de ter a ver com o conteúdo do mesmo, passando a ser mais um palco que os grupos políticos usaram para medir forças.

Interessa identificar este panorama para o criticar e poder ir mais além. O filme tem o potencial para provocar reflexões que podem ser construtivas e valiosas, mas pode gerar, também, confusão e injustiça. Vejamos, então.

ii) Sofrer com os que sofrem por causa de violência sexual

Um dos aspetos que me parece mais relevante é o de alertar para uma realidade que faz sofrer muitas crianças a nível mundial, sendo certo que bastaria uma para ser uma a mais. O Global Report on Trafficking in Persons (2022)[2], elaborado pela ONU, recenseia mais de 50 mil vítimas de tráfico humano, em 2020, das quais 35% de crianças, sendo a maioria traficada com o objetivo de exploração sexual. Tendo em conta as características do tráfico humano e o secretismo que, naturalmente, envolve, podemos presumir que, na realidade, se trate de ainda mais vítimas.

Somos sempre convidados a sofrer com quem sofre, tal como Jesus fez na cruz, e é particularmente importante que nos possamos deixar sensibilizar e tocar por dramas humanos tão distantes que, no nosso quotidiano, passariam despercebidos. Estas realidades serão sempre um espinho na cara de qualquer cristão, que não deve ficar indiferente.

iii) Quem são aqueles que sofrem por causa da violência sexual?

Trazendo esta temática para a realidade portuguesa (e europeia), convém destacar alguns aspetos. Em primeiro lugar, há um aspeto que, não sendo central, está presente no filme e que nos deve preocupar – mesmo na Europa. Falo das questões relativas aos perigos que a internet trouxe, no que toca à violência sexual. A distribuição de material de exploração sexual infantil está, hoje, massificada na internet o que é desconcertante – no filme, referem-se alguns números.

Além desta questão, um outro fenómeno ganhou destaque pelas piores razões. O grooming, que consiste num aliciamento da criança com a intenção de cometer sobre esta alguma forma de violência sexual, tem-se transferido para o mundo digital. Numa rede social, um agressor sexual pode iniciar conversas com dezenas de crianças em paralelo, na esperança de as manipular, criando a aparência de uma relação de proximidade que permita o recurso à violência sexual (que pode nem ser presencial).

Porém, apesar do aumento de situações de grooming online, atendamos a que a maioria dos crimes de violência sexual cometidos contra crianças continuam a ser cometidos por adultos que se encontram na esfera de confiança da criança. Olhando para o Relatório Anual de Segurança Interna de 2022,[3] vemos que apenas 11,6% dos casos de abuso sexual de crianças é cometido por desconhecidos, sendo que 53,8% dos casos ocorrem no seio familiar.

Olhando para o Relatório Anual de Segurança Interna de 2022,[3] vemos que apenas 11,6% dos casos de abuso sexual de crianças é cometido por desconhecidos, sendo que 53,8% dos casos ocorrem no seio familiar.

Assim, não são de estranhar os dados constantes desse mesmo relatório, relativos ao tráfico de seres humanos. Das 26 sinalizações feitas relativamente a crianças e jovens só 18 foram consideradas válidas, sendo que a exploração sexual é apenas um de vários motivos, a par com a exploração laboral, adoção e mendicidade.

Volto a insistir: só uma criança já seria motivo de escândalo. No entanto, não podemos continuar a alertar as crianças e jovens para os fenómenos menos frequentes, ignorando aqueles que têm maior prevalência. Ainda se fala muito do stranger danger como forma de sensibilizar as crianças para o perigo de falar e aceitar presentes de desconhecidos, mas as crianças não estão capacitadas nem protegidas face aos riscos reais.

A educação sexual, dada também pelas famílias, tem, aqui, um papel preponderante: por exemplo, seria importante que, desde pequenas, as crianças fossem sensibilizadas para o conceito de intimidade e partes íntimas e que lhes fosse explicado quem pode ou não ver/tocar nas mesmas e que de forma. Assim, uma criança que é ajudada pela mãe a tomar banho, perceberia que ser ajudada na sua higiene pela mãe não é o mesmo que ter um tio ou amigo de família a tocar-lhe em zonas íntimas. Note-se que este argumento, que é, evidentemente, absurdo para um adulto, pode não o ser para uma criança e acaba mesmo por fazer parte do conjunto de estratégias que os agressores têm para tentar passar impunes.

iv) Quem são aqueles que agridem sexualmente?

Relativamente aos agressores sexuais, o filme pode ser enganador. De facto, o personagem principal refere, em vários momentos, que a sua missão é o combate à pedofilia. Ora, apenas uma pequena parte daqueles que cometem atos de violência sexual corresponde a indivíduos com esta perturbação: na verdade, apenas cerca de 15% tende a apresentar indícios de pedofilia.[4]

A palavra “pedófilo” tem uma conotação muito negativa e quase serve apenas de insulto – ao leitor mais incauto poderia parecer que, ao esclarecer esta distinção, eu estivesse, de alguma forma a desculpar os agressores sexuais. Porém, não é assim, de forma nenhuma. Este esclarecimento pretende apenas que se olhe para a realidade como ela é, para poder tomar as medidas mais adequadas à proteção das crianças, numa ótica preventiva, mas também reativa para que as intervenções junto de agressores possam permitir que estes evitem uma reincidência neste tipo de crimes.[5]

Numa última nota, não posso terminar sem uma crítica à maneira como são vistos os agressores sexuais. À semelhança de muitos outros filmes e séries americanas, os agressores parecem perder toda a dignidade, enquanto seres humanos, pelos atos que cometeram. Assistimos a diálogos em que o personagem principal deixa claro a um agressor que tudo o que ele merecia era ser violado e até morrer, sendo noutra cena mostrada uma fotografia de um agressor morto, na prisão, por outros reclusos. Esta visão não é compatível com os ensinamentos de Jesus e a doutrina da Igreja, nem com o conceito de dignidade da pessoa humana, pilar essencial do Estado de Direito. Podem (e arrisco-me a dizer que devem) revoltar-nos os atos de violência sexual contra crianças, mas não nos devem levar a acreditar que quem os comete perde a sua dignidade, enquanto ser humano, ou que deva perder a vida.

Ao leitor que aqui chegou, aconselho a que veja o filme, mas que o veja com uma perspetiva crítica, à luz dos dados expostos, e que possa tecer as suas próprias considerações, sempre com o objetivo de construir um mundo mais fraterno e seguro, sobretudo para “estes irmãos mais pequeninos” (Mt 25, 40).

 

Referências:

[1] Veja-se o artigo do The Guardian: https://www.theguardian.com/film/2023/aug/15/sound-of-freedom-director-alejandro-monteverde-jim-caviezel-qanon-comments

[2] Disponível em https://www.unodc.org/unodc/data-and-analysis/glotip.html

[3] Disponível em https://www.portugal.gov.pt/pt/gc23/comunicacao/documento?i=relatorio-anual-de-seguranca-interna-2022-

[4] Veja-se o estudo Adolescentes Agressores Sexuais (Portugal) de Barroso, Braz, Raposo & Oliveira. Neste, aponta-se que a percentagem de agressores pedófilos aumenta para cerca de 20%, quando se estudou esta perturbação nos adolescentes agressores sexuais.

[5] Vários materiais disponíveis online ajudam a perceber a distinção, como é o caso do documento do Instituto de Apoio à Criança, disponível em https://iacrianca.pt/wp-content/uploads/2020/07/infocedi81.pdf.

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.