No livro Em Nome da Terra, o autor Vergílio Ferreira começa assim: “Querida. Veio-me hoje uma vontade enorme de te amar. E então pensei: vou-te escrever.”
O “vou-te escrever” abre-nos a uma imensa possibilidade. De, através da escrita, e consequentemente da leitura, podermos tudo. Talvez seja por isso que precisamos tanto de livros e de histórias. E de tempo. Os livros e as histórias fazem-nos falta. Ajudam-nos a partilhar, a imaginar, a criar, a compreender, a ser. Não fossem as histórias e não saberíamos de onde vínhamos e quem somos. Não fossem as histórias e jamais saberíamos que o ser humano conta histórias desde que existe. Jamais saberíamos que as histórias são identidade, rocha que suporta a humanidade. Se não fossem as histórias, não existiria memória viva, pessoal e colectiva.
As histórias, quem escreve histórias e quem lê histórias: podemos, através delas, ler a nossa própria história, experimentar o real e o concreto, encontrar caminhos e pessoas, viver em comum e em unidade. Tudo isto é, precisamente, aquilo que cada um de nós, sentado no sofá com o seu smartphone, não encontra. Não encontra, porque fomos feitos para um tempo diferente daquele que as redes sociais e as apps nos apresentam. Fomos feitos para um tempo de eternidade, que não se coaduna com o fácil, com o imediato, com o descartável, com o extremo, com o tudo ou nada.
Fomos feitos para um tempo de eternidade, que não se coaduna com o fácil, com o imediato, com o descartável, com o extremo, com o tudo ou nada.
Precisamos de boas histórias, de as ler, de as ouvir e contar. Precisamos de histórias para sermos capazes de ler a nossa própria história, para sermos capazes de mergulhar fundo, de desejar muito, de ter sede e procurar água. Precisamos, mais do que nunca, de ter sede e de ir, pelo meio do deserto, à procura de um poço que nos dê de beber. Precisamos de histórias que nos façam homens e mulheres livres.
No seu discurso do 10 de Junho, Dia de Portugal, em Lagos, a escritora Lídia Jorge disse que “os cidadãos são apenas público que assiste a espetáculos em ecrãs de bolso. Por alguma razão, os cidadãos hoje regrediram à subtil designação de seguidores e os seus ídolos são fantasmas”. Queiramos ser contadores e leitores de histórias e não seguidores. Queiramos mergulhar fundo no mais fundo de nós, onde há histórias para continuar e viver.
A “grande vontade de te amar”, que escreveu Vergílio Ferreira, é o desígnio da nossa vida e o “vou-te escrever” o nosso caminho.
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.