Recordo muitas vezes o diálogo entre duas personagens num cartoon de revista cuja origem e autoria não consigo precisar, publicado creio que por ocasião do vigésimo aniversário do 25 de Abril. Os dois interlocutores trocavam galhardetes sobre o presente e o passado, começando com a frase “o meu pai diz que…”. O último a falar rematava: “O meu pai diz que, diga-se o que se disser, agora pode dizer-se”.
Graças a quase 47 anos de democracia, nem sempre temos consciência da riqueza que há em “Sentir como quem olha, / Pensar como quem anda” (descontextualizo os versos de Alberto Caeiro); a liberdade de expressão é a nossa respiração natural, como indivíduos e como sociedade.
É nisto que penso quando penso na liberdade de expressão em democracia. A frase do boneco significa que, em qualquer circunstância, os defeitos que encontramos num regime obviamente imperfeito não se sobrepõem ao valor da liberdade e, por consequência, não se sobrepõem à saudável existência de afinidades e diferenças entre ideias e entre pessoas.
Em democracia, podemos debater com quem está alinhado com o nosso pensamento ou com quem discorda de nós. Podemos discutir “sobre Deus e o mundo”, como dizem os alemães, sem medo de represálias, confiantes que é no diálogo informado, sincero, comprometido que crescemos, que melhoramos.
Em democracia, podemos debater com quem está alinhado com o nosso pensamento ou com quem discorda de nós. Podemos discutir “sobre Deus e o mundo”, como dizem os alemães, sem medo de represálias, confiantes que é no diálogo informado, sincero, comprometido que crescemos, que melhoramos. Ou para aumentar a convicção, ou antes para nos fazer mudar de direção, num quotidiano processo maiêutico quase impercetível, em que também é precisa uma boa dose de humildade.
As redes sociais e os media tradicionais são hoje não só espaço de debate, como participantes ativos na discussão. Na atualidade, não podemos considerar o debate público sem considerar as dinâmicas de um ecossistema que tem ganhado presença, que modela as nossas atitudes e frequentemente impõe o ritmo e o tom da discussão.
Todavia, precisamos também de uma ecologia do espaço público (seja ou não online), que favoreça a convivência empática e o diálogo profícuo.
Muitas vezes vemos como nesse espaço público ou em ambientes privados há pessoas que se ofendem com a discordância, que leem e ouvem ideias diferentes como uma ofensa pessoal, como o debate fica ferido de um tom moralizante que coloca os interlocutores em lados opostos da trincheira ou da barricada, como agora se ouve amiúde.
Há um meme que circula na Internet ou no Whatsapp que mostra três copos transparentes com a mesma medida de água até meio do copo. A legenda do primeiro copo diz que representa o “otimista” e que “o copo está meio cheio”; o segundo copo é o “pessimista” que pensa que “o copo está meio vazio”; o terceiro copo é, consoante a versão do meme, a “Internet”, o “Facebook” ou “A geração atual”. Neste caso, a legenda reza (em português com sotaque brasileiro): “o copo está me ofendendo”.
Não creio que se aplique a todo o debate e a todas as pessoas, sobretudo não creio que seja uma questão geracional. É certo, porém, que esta visão hipersimplificada do que é a discussão toca numa corda que vibra dissonante perante as divergências, passando o foco das ideias para as pessoas, desta feita de modo redutor. Como se houvesse medo de defender essas ideias e fosse mais fácil pôr-se na defensiva diante das pessoas. Discordar não é um defeito de caráter nem um problema moral (ainda que, claro está, possamos discordar sobre moral e sobre caráter).
Embora não exclusivamente, é muito no online (penso nas redes sociais e nas caixas de comentários de jornais, televisões e rádios) que se desenvolve a bem alimentada indústria da indignação nacional.
Embora não exclusivamente, é muito no online (penso nas redes sociais e nas caixas de comentários de jornais, televisões e rádios) que se desenvolve a bem alimentada indústria da indignação nacional. Em Espanha, há uma aplicação criada por um jovem programador, Mikel Torres, que mede o ódio no Twitter. Chama-se Odiómetro, e tem como objetivo justamente “servir de espelho” para nos tornar “conscientes” do que se está a passar e “colocar uma alternativa”. A pergunta está no site: “Estamos conscientes do poder da persuasão, da inteligência, da empatia, da educação e do humor para transmitir e discutir as nossas ideias?”.
A resposta é evidente: nem sempre.
Nas últimas semanas do ano passado, alguns espetadores, leitores e outras figuras da nossa intelectualidade pública ficaram chocados, ofendidos talvez, zangados com uma entrevista de José Rodrigues dos Santos ao jornalista da RTP Vítor Gonçalves (Grande Entrevista, 18 de novembro de 2020) a propósito dos seus dois últimos romances, O Mágico de Auschwitz e O Manuscrito de Birkenau (ambos Gradiva, 2020). O autor foi absolutamente “massacrado”, por comentadores, colunistas e humoristas na TV, nos jornais e na rádio, e, claro, pelos indignados mais ou menos anónimos das redes sociais. A crítica (legítima, diga-se, porquanto numa sociedade democrática criticar é legítimo) ficou quase reduzida a uma frase dita por Rodrigues dos Santos. Não vou reproduzir a polémica, mas queria referir-me a ela porque creio que foi mais um exemplo de uma oportunidade perdida para uma pedagogia pública sobre o nazismo, sobre o Holocausto, sobre a II Guerra Mundial, sobre um terrível passado em cima do qual se construiu a Europa de paz em que hoje vivemos. Até, se quisermos, uma oportunidade perdida para falar de literatura. Com algumas honrosas exceções, o debate foi pobre, centrado na figura pública do autor, e os comentários imediatistas e ofensivos sobre a pessoa superaram a reflexão sobre o tema e sobre os livros.
A polémica é saudável. Uma parte da modernidade da nossa literatura e do nosso pensamento, por exemplo, foi construída no século XIX à volta da Questão Coimbrã, debatendo-se o bom senso e o bom gosto. Costumamos até dizer que “não há nada como uma boa polémica”, quando nos entusiasmam a fértil troca de argumentos e a picardia intelectual elevada. Mas, citando o teólogo checo, Tomáš Halík, “Criar demónios, em vez de fomentar o diálogo e a compreensão, é sempre perigoso.”
Na sua crónica semanal na revista do jornal Expresso, Pedro Mexia escreveu sobre “O FIM DO DEBATE”, assim, em maiúsculas, num jogo de sentido permitido pelo grafismo habitual dos títulos. Falava sobre o fim da publicação da revista francesa Le Débat (1980-2019), cujo mote era “pensar em vez de reagir”.
Trago aqui estas ideias, convicta de que só uma sociedade entregue a um debate genuíno, menos de reação e mais de elaboração do pensamento, permitirá a construção e o exercício de uma cidadania ativa e informada, consciente e preparada. O debate, quando é sério e sincero, quando é informado e verdadeiro (penso menos no valor absoluto da verdade do discurso do que na vontade sincera de dialogar) é valioso e essencial para a democracia. Precisamos do debate: de escolher palavras de convicção e de empatia, reconhecer as de afirmação e de hesitação, de ouvir com tempo as palavras dos outros.
Numa das crónicas de Deste mundo e do outro (1985), Saramago escreveu sobre o silêncio como terra fértil. Porventura assim podemos ver também o espaço público.
“Caem sobre ele as palavras. Todas as palavras. As palavras boas e as más. O trigo e o joio.
Mas só o trigo dá pão.”
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.