A paz social, a calma e a segurança na qual vivemos, foi abruptamente interrompida no final do passado mês de outubro. A lamentável morte de Odair Moniz acabou por incendiar os ânimos no bairro do Zambujal, e um pouco por toda a área metropolitana de Lisboa, e ao longo das últimas semanas desse mês cenas de violência desafiaram a imagem tradicional de Portugal como um “país de brandos costumes”.
As cenas de violência, feridos e danos materiais abalaram a imagem do país como um lugar de paz social e estabilidade, levando-nos a refletir sobre o quanto essa percepção reflete a realidade atual ou esconde divisões e tensões sociais mais profundas.
Por muitos anos Portugal orgulhou-se de uma cultura de resolução pacífica de conflitos, um traço distintivo que nos diferenciava de outras nações europeias, onde tensões etnico-sociais e episódios de violência eram recorrentes. No entanto, os eventos recentes desafiam essa narrativa. Será que somos realmente uma sociedade de “brandos costumes” ou esta ideia começa a revelar-se um mito, encobrindo problemas estruturais e desigualdades não resolvidas?
O episódio ocorrido em Lisboa e os debates que se seguiram em torno de justiça social e segurança revelam questões latentes sobre a convivência entre diferentes culturas e o impacto de políticas migratórias desreguladas. À medida que a população imigrante e refugiada cresce, surgem desafios que desmentem o estereótipo de um país imune a tensões sociais. A crescente polarização, impulsionada por visões antagónicas de extrema-esquerda e extrema-direita, intensifica divisões e enfraquece o diálogo, criando um ambiente de confronto.
A influência de uma cultura de ativismo mais militante, frequentemente associada ao movimento woke, trouxe uma nova dinâmica ao debate público em Portugal, introduzindo questões de justiça social, raça e identidade com maior intensidade.
Se, por um lado, isso gera uma sensibilização importante sobre a inclusão e a diversidade, por outro lado, as respostas têm sido muitas vezes radicais e polarizadoras. A extrema-esquerda desafia a autoridade do Estado e pressiona por mudanças profundas, enquanto a extrema-direita defende uma postura mais rígida para preservar a ordem. Esse antagonismo transforma problemas complexos em ferramentas para agendas políticas que, paradoxalmente, se alimentam mutuamente, acabando por crescer no espaço público e, dessa forma, propagar a sua mensagem, ampliando o fosso social.
Portugal enfrenta o desafio de encontrar uma via alternativa a essa polarização, um caminho que promova uma solução moderada, humanista, equilibrada e focada no bem comum. Uma resposta que se centre nos princípios da Doutrina Social da Igreja — como a solidariedade, a subsidiariedade e o bem comum — que ofereça uma visão que pode pacificar tensões sem perder de vista a justiça social.
Portugal enfrenta o desafio de encontrar uma via alternativa a essa polarização, um caminho que promova uma solução moderada, humanista, equilibrada e focada no bem comum. Uma resposta que se centre nos princípios da Doutrina Social da Igreja — como a solidariedade, a subsidiariedade e o bem comum — que ofereça uma visão que pode pacificar tensões sem perder de vista a justiça social.
O princípio da solidariedade, que incentiva a construção de uma sociedade mais justa e inclusiva, é essencial para enfrentar as desigualdades e integrar as minorias de forma digna e respeitosa. Já o princípio da subsidiariedade aponta para soluções que envolvam as próprias comunidades locais, promovendo o diálogo e a ação colaborativa como meios eficazes para enfrentar problemas sociais. Em vez de uma centralização que distancia as pessoas das decisões, incentiva-se uma resposta mais próxima da realidade vivida pela população, onde a segurança e o respeito mútuo caminhem lado a lado.
A sociedade portuguesa enfrenta, portanto, um momento crucial. Em vez de preservar um mito de “brandos costumes” que ignora as tensões, é preferível adotar uma visão de “costumes” que enfrente os desafios sociais com responsabilidade e colaboração. Tal postura permitirá que Portugal honre a sua tradição de paz e hospitalidade de uma forma realista, adaptando-se às novas realidades e promovendo soluções que valorizem a segurança sem abdicar da justiça social.
Em última análise, a busca por um equilíbrio entre segurança e inclusão, entre paz social e justiça, é a verdadeira tradução de uma sociedade de brandos costumes adaptada aos dias de hoje.
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.