Olha o mundo a girar,
está sempre a mudar tudo à minha volta!
Ai o que vou fazer, que está a acontecer à minha volta?
Não estou aqui pra deixar as coisas passar,
estou aqui para cuidar e para amar.
Esta foi parte do hino da colónia de férias aTerra, que se realizou pela quinta vez na Casa Velha. Ao longo de cinco dias 90 crianças e adolescentes acompanhados por 24 animadores foram aprendendo a viver o que cantavam, descobrindo a resposta a estas que são talvez as questões de fundo que conscientemente ou inconscientemente mais nos ocupam e ligam como Humanidade. Fomos aprendendo a viver juntos, a cuidar uns dos outros na relação com a Terra. Não será esse o grande desafio da Ecologia?
A encíclica Laudato Si fez também recentemente 5 anos, ocasião para balanços em diferentes contextos, através dos quais diferentes iniciativas locais se cruzaram em contextos mais globais. Em Bruxelas, a COMECE (Conferência episcopal europeia) organizou em junho um dia de reflexão e partilha de boas práticas vindas de 5 países. Em Madrid, no início de julho, a Conferência Episcopal Espanhola organizou o seminário sobre Ecologia Integral – “Laudato si’ ¿Empezamos por casa?”. A Casa Velha foi convidada a tomar parte nestas iniciativas, o que nos fez crescer neste sentido de pertença a uma orquestra em afinação, em torno do Bem Comum.
Esta consciência ganhou forma mais clara com a participação no Faith Night Out Porto, evento organizado pelas Equipas de Jovens de Nossa Senhora. Com parte de um total de 12 testemunhos, em 7 minutos fui desafiada a falar sobre o tema “Instrumentos de Deus no cuidado da Criação”. O tema que me foi sugerido levou-me desde logo a uma imagem que o P. Vasco Pinto de Magalhães sj, usou no primeiro dia de reflexão na Casa Velha sobre Ecologia e Espiritualidade, em 2013. A imagem da Criação como uma orquestra sinfónica da qual somos instrumentos. Fazemos por tocar bem desejando alcançar a Beleza e a Harmonia… mas o mundo ainda está bastante desafinado e tantos não têm lugar na orquestra! O grito da terra é o grito dos mais pobres, os desastres ambientais revelam crises sociais que nos espicaçam a ser instrumentos de fraternidade, de discernimento, de compaixão, ao serviço do Bem Comum.
Por vezes perdemos tanto tempo em discussões teóricas, a argumentar as evidências de ter de agir, discutindo se as greves climáticas fazem sentido ou não. A transformação ecológica só acontecerá realmente se crescer a consciência de nos sabermos “apenas” parte de uma história maior, uma pequena parcela preciosa e interdependente que só sabe ser como parte de um corpo. E por isso nada lhe é indiferente. Daqui nasce a consciência da justiça como o garante do justo lugar para todos, para todas as criaturas; da medida justa na gestão como cuidado.
Por vezes perdemos tanto tempo em discussões teóricas, a argumentar as evidências de ter de agir, discutindo se as greves climáticas fazem sentido ou não. A transformação ecológica só acontecerá realmente se crescer a consciência de nos sabermos “apenas” parte de uma história maior.
Em tempo de férias, fica então o desafio de tomar como seu o fio condutor existencial deste ser parte e instrumento no cuidado da criação, uma proposta em cinco andamentos que nos pode ajudar a sintonizar na justa medida com a Criação: história, vocação, verdade, fragilidade, comunhão.
História – Reconhecermo-nos parte do Todo
O sentirmo-nos cuidados e amados ao longo da nossa história, e também o reconhecer a falta desse amor, é a melhor escola de cuidado que podíamos ter. Ser instrumento é ser meio, canal. Só se pode ser instrumento de cuidado a partir do Amor, cuidamos porque amamos, como resposta ao sermos amados e cuidados. A ecologia nasce naturalmente de nos reconhecermos enxertados nesta Vida maior e vidas que nos precedem. Isso faz-nos pequenos, agradecidos. Cuidamos não porque nos dizem para o fazer, ou porque as circunstâncias nos levam a isso… mas porque somos parte, quer da nossa família e terra, quer da família alargada lá longe, em Moçambique, nas Filipinas, onde seja. A maior ecologia é o cuidado com as pessoas: fazê-las crescer nas suas relações com os outros, com a natureza e consigo próprias. Esse é o caminho que fazemos por desbravar na Casa Velha, através de diferentes comunidades que vão crescendo a partir da intuição inicial, enraizada numa família e terra concretas.
Vocação – Que instrumento sou chamado a tocar?
“Sinto-me em casa! Logo que entrei, veio-me à memória a casa da minha avó…” Invariavelmente, ouvimos estas exclamações de quem para na Casa Velha. Sentirmo-nos em casa é uma experiência profundamente reparadora e mobilizadora. Pressupõe conhecer intrinsecamente, reconhecer com o Coração. O sentirmo-nos parte integrante de algo, que nos protege e que ao mesmo tempo nos responsabiliza, faz-nos entender o nosso papel na casa. O acolhimento em casa de uma família e do meio ambiente envolvente tem a capacidade de devolver a cada pessoa as suas raízes e referências, redescobrindo todo o património que as constitui e identifica, descobrindo o valor da família humana, constituindo-nos como irmãos numa casa comum, que é a Terra. O que nos faz sentir em casa? Que instrumento me sinto chamado a tocar?
Verdade – Como sou chamado a tocar?
Numa orquestra temos todo o tipo de instrumentos, uns que marcam muita presença, como os violinos, outros que tocam uma ou duas vezes e passam totalmente despercebidos como os ferrinhos. Passamos muito tempo em negação com o instrumento que somos, a querer ser outra coisa. Por outro lado, muitas vezes ocupamos tanto espaço que atropelamos e excluímos os simples e pequenos instrumentos. Que possamos aceitar simplesmente o que somos, em cada tempo e circunstância.
Fragilidade – lugar de conversão e revelação
A história da Casa Velha tem bem marcada ao longo do seu caminho momentos de abismo e crise – conjeturais (declínio e abandono rural destes territórios de pequena propriedade), familiares (doenças precoces, morte), pessoais – tempos e Lugar onde foi nascendo nova vida. Depois de um momento forte e prolongado de crise, a Casa Velha começou então um suave e tenso tempo de conversão. Pensando num andamento de uma Sinfonia, talvez aquele das cordas tensas dos violinos. O processo exterior de reconversão (da garagem em capela, do palheiro em albergue) que tem vindo a acontecer nos últimos 10 anos, revela um processo interior (pessoal, familiar, comunidade local) em constante ampliação. A fragilidade permite a abertura e a dependência uns dos outros, a complementaridade e solidariedade. Permite que a força se revele não pelas nossas capacidades, mas pela nossa capacidade de amar e de ser amados, de ser com os outros.
Comunhão – a sinfonia já alcançada e ainda por alcançar
A Encíclica Laudato Si veio permitir que a nossa pequenez se possa reconhecer mais parte da orquestra, como sal da terra e fermento na massa. Veio permitir que a pequena Comunidade da Casa Velha inspire e seja inspirada por outras realidades de contextos tão diferentes. O Papa Francisco, como primeiro violino, aproxima-nos de Jesus maestro, na construção do Reino de justiça, paz e alegria, no cuidado da nossa Casa Comum. Faz-nos intuir a Sinfonia que ensaiamos, dando-nos a partitura de critérios para bem viver. Caso ainda não o tenha feito, este pode ser um bom tempo para ler este documento tão certeiro, escolhendo um ponto para aprofundar com a família e amigos.
Se for caso disso, boas férias!
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.