Sê um pai e não um cameraman qualquer

As crianças têm o direito à reserva da sua vida privada. Esse direito é oponível a todos os que o estejam a atacar, mesmo que essas pessoas sejam os pais. Longe vão os tempos em que os pais punham e dispunham dos filhos como entendiam.

Há bem pouco tempo, num episódio do podcast Fuso, a humorista Bumba na Fofinha insurgia-se contra a exposição das crianças por parte dos próprios pais nas redes sociais, chegando mesmo a dizer: “Isto a mim já não me irrita, já entra no plano de uma negligência emocional atroz”.

De facto, é cada vez mais comum ver vídeos de crianças, muitas vezes gravados pelos próprios pais, em todo o tipo de situações: festas de anos, birras descontroladas, crianças a contar piadas, pais a castigar filhos, crianças tristes, pais a aplicarem técnicas de parentalidade positiva aos filhos, crianças confusas, experiências sociais a crianças… Parece-me que esta exposição levanta questões de várias ordens. Vejamos.

1) Constrangimento do comportamento da criança e dos pais pela presença da câmara
Começando por um aspeto mais intuitivo, parece-me evidente que qualquer pessoa reage diferentemente, em função de estar, ou não, a ser filmado. Isso pode concretizar-se em várias reações distintas: para algumas crianças pode ser inibidor dos seus verdadeiros sentimentos, para outras poderá exacerbar os seus sentimentos ou comportamentos adotados. Para o efeito, importa que, em muitos casos, a criança não pode reagir com genuinidade ou espontaneidade ao que lhe está a acontecer. Isto é sobretudo preocupante porque se há algo comum às situações partilhadas nas redes sociais é suscitarem o interesse dos internautas, nomeadamente pela intensidade, desproporcionalidade ou vulnerabilidade que caracteriza a situação.

É cada vez mais comum ver vídeos de crianças, muitas vezes gravados pelos próprios pais, em todo o tipo de situações: festas de anos, birras descontroladas, crianças a contar piadas, pais a castigar filhos, crianças tristes, pais a aplicarem técnicas de parentalidade positiva aos filhos, crianças confusas, experiências sociais a crianças.

Além de não haver espaço para a genuinidade da criança, é claro que também não há espaço para a genuinidade dos adultos, normalmente os pais. Estes vídeos têm como objetivo obter o maior número de gostos e interações – “viralizar”. É notório que, muitas vezes, os comportamentos dos pais são exagerados ou até ensaiados, de modo a capturar o momento posteriormente revelado nas redes sociais. O próprio posicionamento da câmara – ou câmaras – e o facto de se estar a gravar certos momentos pseudo-espontâneos é preocupante, porque: i) ou os pais estão constantemente a gravar os filhos, ii) ou é tudo ensaiado, sendo o filho instrumentalizado na produção de conteúdo para as redes sociais.

Finalmente, importa referir que muitas destas crianças são exibidas em situações absolutamente íntimas, convertendo o espaço de intimidade que lhe deveria ser reservado num espaço de total publicidade. A criança que quer mostrar vulnerabilidade, a criança que faz uma birra por incapacidade de se regular, a criança que chora com saudades dos pais, a criança a tomar banho passam a fazê-lo nas redes sociais, em acesso livre para qualquer pessoa.

2) Direito à reserva da vida privada da criança
Esta exposição recordará, talvez, o leitor de um programa da SIC, lançado em 2018, chamado SuperNanny. Neste programa, eram introduzidas câmaras nas casas de famílias que tinham crianças com comportamentos supostamente problemáticos. Após algum tempo de observação (e exposição) das crianças, a SuperNanny instituía soluções, ensinando os pais a gerir os filhos.

Esteve muito bem a sociedade civil ao insurgir-se, a reboque de um consenso alargadíssimo dos especialistas e organizações com intervenção na proteção dos Direitos das Crianças (e.g., CNPDPCJ, UNICEF, IAC). O programa acabou por ser suspenso e não regressou à televisão nacional, por determinação judicial, tendo-se pronunciado o Tribunal da Relação de Lisboa, o Supremo Tribunal de Justiça e até o Tribunal Constitucional.

Na altura, a questão foi resolvida com base numa disposição laboral, que protege as crianças que participem em atividades de natureza cultural, artística, desportiva ou publicitária, devendo ser pedido um parecer prévio a uma Comissão de Proteção de Crianças e Jovens. No entanto, parece-me mais interessante analisar uma outra perspetiva plasmada, por exemplo, no parecer emitido pela Comissão dos Direitos Humanos da Ordem dos Advogados. Esta considerou que havia o perigo das crianças e jovens expostos neste programa se tornarem “em vítimas de incompreensão e segregação social nos seus ambientes sociais de eleição”.

De facto, uma criança que é filmada num momento de intimidade, ou a fazer uma birra, terá de confrontar-se com o facto de todos os seus colegas e amigos poderem ter visto as imagens. Além disso, como sabemos, não se trata de algo que aconteça apenas no momento de publicação da imagem ou vídeo – é algo que fica para sempre e que perseguirá a criança para sempre. Creio que este aspeto é absolutamente preocupante.

Uma criança que é filmada num momento de intimidade, ou a fazer uma birra, terá de confrontar-se com o facto de todos os seus colegas e amigos poderem ter visto as imagens. Além disso, como sabemos, não se trata de algo que aconteça apenas no momento de publicação da imagem ou vídeo – é algo que fica para sempre e que perseguirá a criança para sempre. Creio que este aspeto é absolutamente preocupante.

Não sendo o âmbito deste artigo entrar numa dimensão muito técnica, as crianças têm o direito à reserva da sua vida privada. E esse direito é oponível a todos os que o estejam a atacar, mesmo que essas pessoas sejam os próprios pais. Longe vão os tempos em que os pais punham e dispunham dos filhos como entendiam, mas existe uma herança liberal pesada que continua a dar força à ideia de que o Estado e a sociedade não têm nada de intervir no âmbito familiar, seja a que título for.

3) Exposição da criança à violência, nomeadamente violência sexual
Por último, importa dizer que a exposição da criança nas redes sociais aumenta o risco de que sobre ela possam ser praticados atos de violência, nomeadamente de violência sexual.

Desde logo, quanto maior for a exposição da criança, mais material haverá para que se possa recorrer abusivamente à imagem e até à voz da criança. Existem, hoje, ferramentas generativas de IA que podem criar vídeos, imagens e texto que podem ser usados para denegrir ou até ameaçar as crianças, colocando-as por exemplo em cenários sexualizados ou violentos. Veja-se um recente caso, em Espanha, em que dois jovens chegaram mesmo a ser condenados por práticas desta ordem. (nota 1)

Além disso, a partilha excessiva de imagens e informação traz outros problemas de segurança para a criança: um potencial agressor pode estudar as rotinas de criança (e.g., através da publicação de uma fotografia da criança no clube desportivo, num espetáculo em que participe por pertencer a uma escola de dança ou música ou mesmo num momento de início de ano letivo na escola) ou estudar o espaço da própria casa, colocando a criança em perigo.

Na dimensão da violência sexual, preocupa particularmente que haja acesso a tanta informação sobre a criança porque essa pode facilitar o processo que o agressor sexual faz de aproximação à criança.

Este processo de aproximação da criança, chamado grooming, consiste em várias manobras junto da criança e do seu círculo de forma a ganhar a confiança da mesma, bem como a dos pais e figuras de referência. Depois, o agressor coloca-se numa relação em que a vítima gere uma certa dependência em relação a ele, acabando, depois, por sexualizar essa relação e dependência.

Quando o agressor tem acesso a tanta informação, atalha o caminho na seleção da própria vítima, ganha mais facilmente a sua confiança (e.g., por conhecer os gostos da criança, ter acesso a informação pessoal da criança que na cabeça da mesma pressupõe intimidade e gera confiança) bem como a dos pais e, em última análise, poderá ter acesso a informação que lhe permita melhor manipular a criança de forma a gerar uma dependência da mesma.

Existem muitos outros riscos, mas estes parecem-me ser mais do que suficientes para levar cada pai e cada mãe a adotar uma postura mais consciente nas redes sociais. Além disso, parece-me ser importante que se repense a intervenção e supervisão que é feita online, seja a nível do enquadramento legal que existe (se é que se pode considerar que existe), seja a nível das políticas públicas implementadas.

Termino com mais uma frase dita pela Bumba na Fofinha no seu podcast: “Sê um pai e não um cameraman qualquer.”

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.