Revelaste estas coisas aos mais pequenos

A subvalorizada força e o poder das pessoas comuns.

Acabo de regressar do Curdistão iraquiano onde estive ao serviço do Jesuit Refugee Service (JRS). Durante ano e meio partilhei a minha vida com a vida de milhares de deslocados iraquianos e refugiados sírios e fiz verdadeiros amigos entre yazidi, muçulmanos e cristãos.

Tenho consciência que estes milhares de pessoas a quem servi são uma pequena e ridícula gota do mar (Mediterrâneo, Egeu ou outro) que formam as 65.6 milhões de pessoas forçadas a deixar casas e terras por diferentes tipos de conflitos e perseguições. Tenho consciência também que numa cultura onde a novidade tem de ser constantemente nova, esta realidade que desgraçadamente não perde atualidade acaba por, paradoxalmente, ‘cansar’ quem não a padece e por des-ligar a nossa vida das suas.

Por fidelidade ao vivido e à graça recebida, a minha primeira participação no Ponto SJ parte desta responsabilidade que todos temos em promover a possibilidade de reencontro entre os que usufruímos da paz há décadas e os que vivem subjugados pelo conflito e pela violência igualmente há décadas. Os relatos de vida de uns e de outros são muito, muito diferentes. No entanto, uns e outros, todos, pertencemos àquele grupo maioritário das pessoas comuns a que o Evangelho apelida de ‘multidão’, pela qual Jesus tinha uma especial predileção e onde reconhecia a sabedoria que provinha do Pai. “Eu te bendigo, ó Pai, Senhor do Céu e da Terra, porque escondeste estas coisas aos sábios e aos entendidos e as revelaste aos pequeninos” (Mt.11,25). A sabedoria está nestes e não nos sábios e entendidos.

As vozes a que habitual e predominantemente os telejornais dão tempo e escolhem divulgar, a forma e o ângulo que elegem para as notícias que dão, e as vozes de inúmeros chefes de estado e políticos que anunciam a violência e o ódio como afirmação do seu poder e da sua política externa cobrem totalmente estas outras vozes das pessoas comuns que naturalmente vivem noutra alternativa. Até à chegada destes ‘falsos profetas’ com os seus tanques, caças, drones, bombas e morteiros, vizinhos de diferentes identidades, tribos ou grupos religiosos viviam lado a lado com o código de entreajuda comum a todas as comunidades. Fui testemunha disto no Curdistão iraquiano, no Kivu Norte na República Democrática do Congo e no Ruanda. “Antes disto vivíamos lado a lado e em paz o nosso dia-a-dia. Agora parece que somos estranhos e querem-nos destruir”.

Nestes últimos 17 meses foi isto o que vivi. Entre deslocados internos yazidi, muçulmanos e cristãos do Iraque na região autónoma do Curdistão. Foi ali que percebi pela primeira vez, à volta duma mesa de trabalho, o alcance da palavra de Jesus “amai os vossos inimigos” e a subvalorizada força e o poder das pessoas comuns. De repente apercebi-me que à volta daquela mesa, como irmãos, estávamos sentados os ‘inimigos’ a trabalhar pelo bem comum: muçulmanos, yazidi e cristãos. As nossas relações de trabalho abriram a porta à amizade e à dedicação entre ‘inimigos’ para além das oito horas por dia. As nossas relações de amizade e dedicação abriram a porta a querer conhecer melhor o ‘inimigo’ da mesma forma que se quer conhecer aquele que acaba por se tornar num melhor amigo. Num Domingo de Ramos, os ‘inimigos’ yazidi e muçulmanos quiseram acompanhar-nos à missa para conhecer melhor os ‘inimigos’ cristãos. Num domingo frio de inverno mas sem chuva, os ‘inimigos’ cristãos e muçulmanos quisemos acompanhar os ‘inimigos’ yazidi num dia de peregrinação a Lalesh, o seu mais importante santuário. A subvalorizada força e o poder das pessoas comuns que, inversamente a muitas das suas lideranças, é portadora de paz por natureza. “Eu te bendigo, ó Pai, Senhor do Céu e da Terra”.

Deveríamos colocar-nos a questão se não há um mito que lentamente nos vai envenenando e nos enfraquece, chegando a duvidar das palavras de Cristo e a pô-las em causa. Aquele de pensar e de chegar a acreditar que não podemos fazer nada, que não podemos alterar o curso que está a tomar o nosso tempo histórico. Deveríamos colocar-nos a questão se este mito não acaba por facilitar uma manipulação global, em maior ou menor grau, por estes ‘sábios e entendidos’ que exploram falsamente com factos alternativos a necessidade natural de proteção e de segurança humanas promovendo receios e medos, erguendo barreiras, muros e defesas. E digo falsamente porque a ser verdade não se entende como é que os que se protegem desta forma se sentem ainda mais desprotegidos e inseguros.

Deveríamos colocar-nos a questão se somos conscientes, ou não, que a multidão que formamos tem Pastor, que a revelação do Pai foi entregue às pessoas comuns que somos nós, capazes de amar o inimigo e de alterar o curso que está a tomar a nossa comum História.

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.