Repto aos jovens professores

O diálogo que promovem entre o passado e o futuro, traduz-se numa acção tão conservadora quanto revolucionária: “sem conservação a educação não é simplesmente possível”, mas, atenção, ela deve preparar para a “perpétua mudança”.

“… o embuste de que não é preciso ensinar manifesta claramente algumas consequências. E uma delas é não ser preciso saber para ensinar. Claro que não sendo preciso saber, qualquer um serve para professor; e se qualquer um serve, não precisa de ser bem pago – e, muito menos, ser considerado socialmente como indispensável.”

Carlos Fernandes Maia, 2022, 111.

 

Condições de trabalho difíceis, pouco dignificantes e ainda menos compatíveis com os salários oferecidos têm sido razões apontadas para justificar a falta de atractividade pela docência. A elas somam-se outras, menos evidentes, que tocam a essência da profissão: a “transformação do ensino” é uma delas. Certo é que a falta de professores se tem acentuado em múltiplos países, a par de tentativas para a superar. Portugal não é excepção. Aqui realizaram-se estudos cujos resultados nos preocuparam, a comunicação social acompanhou o assunto, os responsáveis políticos ziguezaguearam nas suas declarações. Neste mês, foi tomada uma medida para “não deixar alunos sem aulas” (Decreto-Lei n.º 53/2022, de 12 de Agosto, artigo 161.º): podem candidatar-se a professores, com habilitação própria, em concurso a nível de escola, licenciados pós-Bolonha, isto é, com três anos de estudo na área científica. Nada mais.

Os contratados nestas condições, com grande fragilidade formativa, facilmente cairão no “embuste” denunciado na citação em epígrafe. Para evitar tal situação recomendo a leitura do ensaio intitulado “A crise na educação”, publicado em 1957 e assinado por Hannah Arendt.

1. Chegada aos Estados Unidos da América em virtude da Segunda Grande Guerra, a filósofa alemã, reconhecendo não ser “educadora profissional”, prestou atenção à tendência – progressista e pragmática – que, então, se reivindicava para a educação, muito assente na ideia de que os mais jovens são autónomos na vontade e capacidade para discernir necessidades e interesses de aprendizagem. Livres de constrangimentos impostos pelos representantes do passado, por via da sua expressão espontânea, conseguiriam construir um admirável futuro.

Este ancestral “optimismo naturalista” – retomado por Rousseau e dinamizador do Movimento da Educação Nova –, constituía para Arendt “um problema político de primeira grandeza” uma vez que quebrava o elo entre adultos e crianças: comprometia a obrigação que cabe “aos que estão há mais tempo no mundo” de encaminharem “os recém-chegados ao mundo” para que “tenham a possibilidade de realizar qualquer coisa de novo” no mundo.

Trata-se de um duplo problema: ontológico (porque a educação cimenta “qualidades e características” dos mais jovens, tornando-os seres distintos dos que existiram, existem e hão-de existir) e civilizacional (porque a educação viabiliza a perpetuação da herança colectiva que se actualiza no presente, confiando-se que tenha continuidade no futuro). Uma vez que o “desenvolvimento da criança” permite a “continuidade do mundo”, o elo entre educadores e educandos não pode ser dispensado, ainda que se modifique no percurso educativo, em prol de uma crescente autonomia dos segundos, tornando-os capazes de virem a assumir responsabilidade idêntica à dos primeiros.

“Este ancestral “optimismo naturalista” – retomado por Rousseau e dinamizador do Movimento da Educação Nova –, constituía para Arendt “um problema político de primeira grandeza” uma vez que quebrava o elo entre adultos e crianças (…)”

Assim, admitir que as crianças são “uma minoria oprimida que necessita de ser libertada” e que “se devem deixar governar a si próprias”, resulta em vedar-lhes o acesso ao mundo adulto. “Ficam, ou entregues a si mesmas, ou à tirania, verdadeiramente tirânica, do seu grupo”, limitando-se os adultos a “assistir a esse processo”. Sem lhes facultar a “segurança de um abrigo”, hipotecam o seu desenvolvimento, com efectivas implicações para o mundo.

2. Focando-se, de seguida, na educação escolar, Arendt inclui no problema a substituição do “saber pelo fazer” e do “trabalho pelo jogo”. Ora, a função da escola – situada entre o domínio privado, da família, e o domínio público, da sociedade – é dar a conhecer, aos que “estão ainda em devir”, o mundo. Este, explicou, é “criado por mãos humanas para servir de casa aos humanos”, sendo que a condição de mortais das primeiras estende-se à segunda. Logo, a preservação da “casa” – que acolherá, pelos tempos fora, novos seres –, depende, em grande medida, dos professores. O diálogo que promovem entre o passado e o futuro, traduz-se numa acção tão conservadora quanto revolucionária: “sem conservação a educação não é simplesmente possível”, mas, atenção, ela deve preparar para a “perpétua mudança”.

Isto significa que o mundo dado a conhecer às crianças não será o mesmo que elas encontrarão quando forem adultas. É precisamente esta circunstância que lhes abre “a sua própria possibilidade de inovar”. Ao negar-se-lhes o já construído – tornado tradição ou memória colectiva –, nega-se-lhes o direito a uma tal possibilidade.

A função do professor, como representante do mundo, é introduzir, gradualmente as crianças nele, persistindo na conservação daquilo que “está irrevogavelmente condenado à ação destrutiva do tempo”, mas no sentido de abrir portas para um futuro, que não será igual ao presente nem ao passado. Por isso, a “profissão requer um extraordinário respeito pelo passado”, sem o qual é impossível “estabelecer a mediação entre o antigo e o novo”. Aos que o rejeitarem ou dele se alhearem não “lhe deveria ser permitido participar na educação”.

3. Com as citadas palavras, respondia Arendt à subversão do conhecimento acerca do mundo e da autoridade docente que entendia estar em curso: “considera-se pouco importante que o professor domine a sua disciplina”, pois a tarefa que lhe está atribuída é “não de ensinar um saber, mas inculcar um saber-fazer”, e isso com recurso ao jogo, que é a continuidade “sem ruptura da (…) existência habitual” da criança. Será, portanto, “incapaz de levar as crianças a adquirir conhecimentos requeridos”, bem como “o hábito”, que deve ser “adquirido pouco a pouco, de trabalhar em vez de jogar”.

O filósofo [Gert Biesta] insiste na devolução aos professores do lugar que lhes assiste, pois o ensino não é inimigo da liberdade do aluno; se exercido com saber e consciência, encaminha-o para o modo adulto de estar no mundo.

Privado destes dois pilares, o professor deixa de ser – e de se ver como – responsável pelos alunos e, por inerência, pelo mundo. Arendt persiste: “face à criança, é como se ele fosse um representante dos habitantes adultos do mundo que lhes apontaria as coisas dizendo ‘eis aqui o nosso mundo’”, daí que declinar-se o elo entre um e outros é nada menos do que “lavar as mãos” do “destino”, tanto das crianças como do mundo.

George Steiner (2011, 88) sublinha esta ideia dizendo que o professor “tem nas mãos o mais íntimo dos seus alunos, a matéria frágil e incendiária das suas possibilidades”, por isso, “ensinar sem uma grave apreensão, sem uma reverência perturbada pelos riscos envolvidos, é uma frivolidade. Fazê-lo sem considerar as possíveis consequências individuais e sociais é cegueira”. E porque deve querer, acima de tudo, que os seus alunos se tornem autónomos, o professor prepara-os “para a partida”, para a imprescindível separação.

Gert Biesta (2018), leitor empenhado de Arendt, nota a pertinência que a sua análise, muito crítica, mantém para se perceber o actual “discurso de aprendizagem” – “learnification” –, próximo daquele que ela conheceu. Faz sobressair a iniciativa dos alunos na aprendizagem – “agency e co-agency” –, mas não necessariamente com alguém, pelo que o professor é reduzido a apoio ou facilitador. O filósofo insiste na devolução aos professores do lugar que lhes assiste, pois o ensino não é inimigo da liberdade do aluno; se exercido com saber e consciência, encaminha-o para o modo adulto de estar no mundo.

Poderíamos concluir que de pouco valeu o empenho que Arendt pôs no seu ensaio uma vez que, apesar de muito citado, não parece ter influência nas decisões políticas, nomeadamente nas que se prendem com a preparação de quem já ensina e de quem se inicia no ensino. Deixamos, sobretudo a estes, o repto para que pensem no sentido do que é “ser professor” e na “acção educativa” que daí decorre. Esperamos que retenham a principal mensagem do trabalho aqui em destaque: como adultos não podemos retirar aos jovens o direito de serem educados, “simplesmente não lhes podemos dizer, enganando-os, que “devem procurar desenvencilhar-se o melhor possível por vós próprios”. Isto porque existe “o ponto em que se decide se se ama suficientemente o mundo para assumir a responsabilidade por ele (…) [e] se se amam suficientemente as nossas crianças para não as expulsar do nosso mundo, deixando-as entregues a si próprias.

Rematamos citando Kant (1803/2012, 15), que Arendt tão bem  conheceu e no qual encontrou inspiração: é “pelo facto de uma geração transmitir as suas experiências e conhecimentos à seguinte, e esta acrescentar algo por sua vez e passá-la desse modo à seguinte, que pode emergir um conceito correcto de modo de educar”.

A autora escreve segundo o antigo acordo ortográfico.

Referências:
Arendt, H. (2006). A crise na educação. In H. Arendt. Entre o passado e o futuro (pp.183-206). Relógio D’Água.
Biesta, G. (2018). O dever de resistir: sobre escolas, professores e sociedade. Educação (Porto Alegre), 41 (1), 21-29.
Kant, I. (2012). Sobre a pedagogia. Edições 70.
Maia, C. F. (2022). Cenas do tempo e da vida. Sindicato Nacional dos Professores Licenciados.
Steiner (2011). As lições dos mestres. Gradiva.

Fotografia – Matthew Lancaster – Unsplash

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