Refugiados climáticos: a solução adiada

Quando as campanhas de emergência climática se multiplicam, e o mundo se mobiliza contra as alterações climáticas, ouvimos clamores de proteção aos refugiados climáticos. Mas como proteger algo que oficialmente não existe?

Em março de 2018, o mundo assistia incrédulo para ver se seria verdade que não verteria água das torneiras na Cidade do Cabo. O Dia Zero estava a chegar, dia anunciado como dia do corte de toda a água potável das casas da cidade, porque as reservas estariam tão baixas que nada mais restaria. Talvez pela dimensão da cidade, ou pelas belas paisagens emblemáticas da Table Mountain, parecia irreal que uma cidade que alberga 3,8 milhões de pessoas pudesse não ter água. Se o Dia Zero chegasse, como sobreviveriam as pessoas?

Esta é apenas uma das muitas histórias que ilustram a gravidade das alterações climáticas. Há países que estão a afundar-se. Países a transformar-se em desertos. Há zonas costeiras inabitáveis porque estão inundadas. Há lugares onde nada de verde brota, há anos.

Para aqueles que chamam a estes lugares “casa”, não restam muitas opções. Ficar poderá significar fome severa ou até morte. Por isso fogem com tudo o que conseguem levar, num percurso de busca de condições de vida digna. Muitos nem sabem para onde ir.

Para aqueles que chamam a estes lugares “casa”, não restam muitas opções. Ficar poderá significar fome severa ou até morte. Por isso fogem com tudo o que conseguem levar, num percurso de busca de condições de vida digna. Muitos nem sabem para onde ir. Só sabem que têm de sair. Chegar a um sítio onde haja água para beber, plantas para semear, onde possam viver e trabalhar e ver a sua família protegida.

Para todos aqueles que já trabalharam com refugiados (ou requerentes de asilo) a história soa a déjà vu. Os refugiados fogem de guerras, de perseguição, de violações de direitos humanos, da falta de acesso a direitos básicos como o da saúde. Buscam proteção noutros países, porque o seu próprio país não tem capacidade para os proteger.

Assim sendo, uma pessoa que foge por não estar garantido o seu direito à vida devido às consequências das alterações climáticas, não deveria estar abrangida pelo estatuto de refugiado? O direito internacional atual diz que não.

A Convenção sobre o Estatuto de Refugiado de 1951, com a revisão do protocolo de 1967, apresenta o conceito aceite de refugiado. O refugiado tem de ser uma pessoa perseguida por razões de raça, religião, nacionalidade, associação a determinado grupo social ou opinião política; alguém que esteja fora do seu país e não possa pedir a sua proteção. Décadas antes de se ter percebido que se vivia uma emergência climática, e de se terem tornado irrecusáveis as suas consequências, estabeleceu-se uma Convenção que não previa o motivo climático como válido para receber proteção.

Estabeleceu-se uma Convenção que não previa o motivo climático como válido para receber proteção.

Com a Organização Internacional das Migrações a estimar o número avassalador entre 200 e 1.000 milhões de pessoas a deslocarem-se por motivos climáticos em 2050, muitos não conseguem compreender porque, a menos de 30 anos desse cenário, ainda não se tenha desenhado uma solução para este problema cada vez mais premente. Até porque ele não é novo. Dados de 2018 (OIM) indicam que 62 milhões de pessoas se deslocaram por fenómenos climatéricos num só ano. Sabemos também que 10% da população mundial vive em locais a menos de 10 metros acima do nível do mar e que o deserto do Saara vai-se expandindo um pouco a cada dia.

Um desconhecido agricultor do Kiribati (um país que muitos não sabem localizar no mapa) foi atirado para a ribalta em 2014. Ioane Teitiota pediu asilo na Nova Zelândia, alegando ser um refugiado climático. Depois de meses de espera com o mundo de olhos vidrados no país, Ioane viu o seu pedido ser recusado pelo Supremo Tribunal da Nova Zelândia. Ele não conseguiu provar que se enquadrava na definição da Convenção das Nações Unidas. A Nova Zelândia não quis tomar uma decisão que poderia tornar-se um precedente e abrir jurisprudência para a concretização do conceito de refugiado climático. Isto, muito embora já desde 2008 se fala em migrantes ambientais, donde surgiu a expressão popular “refugiados climáticos”.

Com o Kiribati a afundar e a água salgada a contaminar a água potável, o país luta pela sobrevivência importando terra para compor o desaparecimento dos atóis, à medida que sobe o nível de água do mar. Outros países insulares da região, como o Tuvalu, sofrem as mesmas consequências, com as suas populações contemplando soluções distantes ou improvisadas. Porque na ausência de uma solução de direito internacional consistente, resta a boa vontade dos Estados. Em condições excecionais, ou com acordos limitados, alguns Estados aceitam acolher pessoas que fogem por razões climáticas. São pequenos pensos rápidos numa ferida exposta, que abre de forma galopante.

Nos muitos grupos internacionais de discussão criados para debater este assunto, tem se tentado obter consenso sobre alguns pontos, que são determinantes para balizar o conceito de refugiado climático. Em primeiro lugar, o que constitui uma emergência climática? Ou seja, quão mal tem de estar a situação no meu país para que me seja legítimo sair em busca de proteção? A erosão dos solos é suficiente? Estar a orla costeira inundada? Não poder fazer plantações agrícolas por a água doce estar contaminada? Em segundo lugar, que mecanismos de proteção assegurar? Especialmente na iminência da enormidade dos números que a OIM prevê, é possível criar o estatuto? Ou levará a uma migração maciça de milhares de indivíduos das ilhas do Pacífico e da África Central? Ou talvez do Sri Lanka, onde milhões vivem nas zonas costeiras que já estão inundadas? E caso seja atribuído o estatuto, como lidar com a perpetuidade do mesmo? Com o facto de que possa nunca haver condições para a pessoa regressar para o país de onde partiu, porque ele simplesmente já não existe?

Claro que muitas destas são falsas questões. Porque nos movimentos migratórios atuais já estão refugiados climáticos ou migrantes ambientais, como se queira chamar. Muitos, dos milhares de pessoas que chegam às costas da Grécia e da Itália, fogem dos seus países devido à escassez de recursos. Escassez essa que agrava muitas outras situações, até a conflitualidade que levou ao eclodir de algumas das guerras e disputas internacionais que vivemos atualmente.

Em 2020, o Comité dos Direitos Humanos tomou uma decisão histórica. Afirmou claramente: se existe uma ameaça imediata à vida devido às alterações climáticas, e se a pessoa tiver de cruzar a fronteira para buscar proteção noutro país, não deverá ser enviado de volta, pois estaria em risco de vida, tal como numa guerra ou numa situação de perseguição.

Em 2020, o Comité dos Direitos Humanos tomou uma decisão histórica. Afirmou claramente: se existe uma ameaça imediata à vida devido às alterações climáticas, e se a pessoa tiver de cruzar a fronteira para buscar proteção noutro país, não deverá ser enviado de volta, pois estaria em risco de vida, tal como numa guerra ou numa situação de perseguição. Ao fazê-lo o Comité tenta fazer os Estados cumprirem o direito a non-refoulement, ou seja, o mecanismo de direito internacional que impede as pessoas de serem enviadas para a morte certa. Infelizmente a decisão do Comité não é vinculativa.

As décadas vão passando e muitas soluções polémicas vão passando pelos grupos de discussão, como criar enclaves dentro de países (como a Austrália), para colocar os migrantes. Soluções muitas vezes que não têm em conta como os próprios migrantes veem a questão, e que não parecem ter em conta outras soluções passadas de enclaves que só geraram violência e competição por recursos.

Como é apanágio de muitas situações, as perspetivas securitárias parecem sobrepor-se ao paradigma dos direitos humanos e pouco investimento é feito na prevenção. Afinal, a três décadas de 2050, não haveria algo a fazer para impedir que mil milhões de pessoas tivessem de se deslocar para fora do local que as viu nascer, onde a sua família tem raízes com uma cultura e uma língua que reconhecem como sua? É preciso esperar que as vagas migratórias nos atinjam em números abissais, para surpreendidos dizermos: como chegámos aqui?

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.