Recuperar o sentido de cuidar uns dos outros

“O grande problema da nossa sociedade é que parecemos ter perdido o sentido de cuidar uns dos outros” – afirma Tom Mortier, cidadão belga, cujo caso foi aceite pelo Tribunal Europeu dos Direitos do Homem.

Recentemente, o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem (TEDH) aceitou o caso de Tom Mortier, cuja mãe, Godelieva De Troyer, de 64 anos, foi eutanasiada sem o seu conhecimento. Godelieva tinha um bom estado de saúde física, mas sofria de depressão. Mortier nunca foi informado pelo médico, nem pelo hospital, que a hipótese de eutanásia estava sequer a ser considerada. Apenas foi contactado no dia seguinte, para ir à morgue recuperar o corpo da mãe.

Na Bélgica, país onde a eutanásia está legalizada desde 2002, os números desta prática têm aumentado todos os anos, embora não se trate de um direito automático. De acordo com dados oficiais, atualmente morrem seis pessoas por dia, com recurso a esta prática. No momento do pedido, o paciente deve ser capaz de exprimir a sua vontade, estar consciente, encontrar-se numa situação médica sem saída, num estado de sofrimento físico e/ou psíquico insuportável, devido a doença grave ou incurável.

Vários casos de eutanásia praticadas ao abrigo da lei belga, são controversos: uma  mulher, de 44 anos, que sofria de anorexia nervosa; a mãe de Mortier, de 64 anos, com depressão; os gémeos Verbessen, surdos de nascença em risco de ficar cegos; professor De Duve, com 95 anos, que não era doente terminal, nem sofria de “dor insuportável”; Nathan, transsexual, após o insucesso de uma cirurgia de “mudança” do sexo e o escritor Hugo Claus, numa fase inicial da demência (não em fase terminal). Desde 2014, a eutanásia passou a abranger menores, sem limite de idade. Nestes casos, prevalece a noção de capacidade de discernimento do menor.

De acordo com dados oficiais, na Bélgica, atualmente morrem seis pessoas por dia, com recurso à eutanásia.

A situação na Bélgica não é caso único. Nos poucos países que legalizaram a eutanásia e/ou o suicídio assistido (na União Europeia são apenas três, Holanda, Bélgica e Luxemburgo) os números também têm aumentado. Este fenómeno é  conhecido como “rampa deslizante” (slippery slope) – uma vez iniciada a descida, a mesma ganha uma velocidade vertiginosa, difícil ou impossível de travar. Este deslize verifica-se a partir do momento da legalização, com a promessa da morte a pedido se restringir a situações raras e excecionais, reguladas por critérios rigorosos. Porém, com o decorrer do tempo, constata-se que a exceção se vai aproximando perigosamente da regra, aumentando o número de mortes e de critérios legais que as permitem. A evidência de abusos numa matéria em que está em causa a vida humana, cuja dignidade é inalienável, são inquietantes. Mais inquietantes ainda por afetarem sobretudo as pessoas mais vulneráveis. Na Holanda, existem provas concretas de “eutanásia não-voluntária” (mortes sem ser a pedido do paciente, mas de outrem). Estes casos e outros encontram-se reportados no Relatório “Suicídio Assistido e Eutanásia”, do Centro Católico de Bioética de Anscombe (2015) no Reino Unido, é um importante documento destinado a decisores políticos, que reúne várias visões, conclusões e resultados de investigações a favor e contra a eutanásia no mundo.

O conhecimento desta situação tem seguramente impacto no sentimento de (in)certeza e (in)segurança dos cidadãos. Não apenas no que diz respeito às leis que permitem estas práticas, mas particularmente a forma como as mesmas são interpretadas e aplicadas. Neste âmbito, muitas interrogações e reservas se colocam. Nelas se incluem a interpretação de conceitos indeterminados com elevado grau de subjetividade, tais como “sofrimento intolerável”. Pois, como bem refere Carine Brochier, Coordenadora do Instituto Europeu de Bioética: “Não há um termómetro para medir o sofrimento”. E acrescenta ainda: “Há bons cuidados paliativos na Bélgica, mas parece que a eutanásia é a melhor forma de morrer. Isto é catastrófico”

Na Holanda, existem provas concretas de “eutanásia não-voluntária” (mortes sem ser a pedido do paciente, mas de outrem).

Apesar dos riscos de banalização e de abusos, muitos cidadãos desconhecem ainda os perigos que escondem estas leis. O próprio Tom Mortier reconhece que antes da eutanásia da sua mãe – com impacto devastador na sua família -, este tema lhe era indiferente, considerando que não o afetava. Mudou radicalmente de opinião após o acontecimento traumático relativo à morte da sua mãe. Na verdade, este tema diz respeito a todos os cidadãos e implica uma reflexão aprofundada sobre a sociedade onde vivemos e os valores em que acreditamos e de que não podemos abdicar. A linha vermelha que não devemos ultrapassar deverá a defesa da dignidade intrínseca e inalienável de cada vida humana.

O caso Mortier remonta a 2012 e passou já pelos tribunais belgas, que o consideraram improcedente. O Tribunal Europeu dos Direitos do Homem é agora chamado a pronunciar-se. Em resumo, Mortier refere que forneceu ao Estado Belga várias oportunidades para analisar o seu processo, sem sucesso. Alega que estão em causa falhas no sistema que constituem violações de direitos humanos, previstos na Convenção Europeia de Direitos do Homem: o direito à vida da mãe de Tom, vulnerável, com uma depressão (Artigo 2.º); violação do direito à vida familiar de Tom, privado de forma traumática da sua mãe (Artigo 8.º); e persistente falha do Estado Belga em prever um recurso efetivo ou qualquer reparação (Artigo 13.º).

Com o decorrer do tempo, constata-se que a exceção se vai aproximando perigosamente da regra, aumentando o número de mortes e de critérios legais que as permitem. A evidência de abusos numa matéria em que está em causa a vida humana, cuja dignidade é inalienável, são inquietantes.

Nas últimas décadas foram poucos os casos de eutanásia e suicídio assistido que chegaram ao TEDH. Não obstante, com o avolumar dos debates e propostas de Lei sobre a descriminalização da morte assistida em diversos países do Conselho da Europa (incluindo Portugal), tem vindo a assistir-se ao surgimento de novos processos que, apesar de rejeitados “liminarmente” não impediram o Tribunal de consolidar e até desenvolvendo a sua jurisprudência nesta matéria.

A finalidade última do TEDH é a de guardião e intérprete da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, nos nossos dias. Isto reforça a importância da decisão no caso Mortier, onde se revelam os perigos das leis da eutanásia, que muitas vezes começam por se restringir apenas a casos dramáticos, mas rapidamente se expandem, permitindo a este Alto Tribunal analisar desvios éticos e morais que se estão a verificar na Bélgica e noutros países. Existe assim a expectativa de que a jurisprudência deste processo, possa reafirmar a natureza primordial e matricial do direito à vida, condição imprescindível ao exercício dos demais direitos e liberdades constantes da Convenção, bem como contribuir para uma sociedade onde prevaleça o sentido de cuidar uns dos outros, em particular dos mais vulneráveis.

 

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.