Racismo escondido em Portugal

Desde o bairro em que crescem, às expetativas da escola, e aos preconceitos para procurar casa e serem selecionados para um emprego, a vida das pessoas negras em Portugal enfrenta muitos mais obstáculos do que a das pessoas brancas.

Pensei em escrever este artigo na primeira pessoa, mas desisti antes mesmo de começar. O narrador desse meu texto hipotético seria negro e descreveria as dificuldades da sua vida em Portugal, simplesmente pelo facto de ser negro e afrodescendente. Ficaria uma narrativa interessante e talvez o artigo, assim, conseguisse tocar mais pessoas; no entanto, falharia certamente numa série de pormenores que eu, sendo branca, não saberia descrever. Eu sou filha do privilégio branco (white privilege) e, enquanto tal, por mais que queira, nunca conseguirei calçar, de facto, os sapatos de quem nasceu negro.

Quem nasceu negro em Portugal terá muito provavelmente uma vida mais difícil do que a minha no que diz respeito à educação, habitação, nacionalidade, justiça e emprego. De facto, cada um destes temas constitui um capítulo do livro Racismo no País dos Brancos Costumes, de Joana Gorjão Henriques, jornalista com pós-graduação em sociologia que tem tratado esta problemática com a seriedade que merece, há já vários anos. Para o jornal Público, fez uma série de reportagens, em texto e em vídeo, onde traduz dados objetivos em rostos e entrevistas que nos conseguem aproximar do que muitos de nós teimam em não ver.

Em Portugal, junto com o mito de uma colonização branda e de uma mestiçagem espontânea, persiste o mito de um racismo inexistente.

Essa é uma das teses que este livro, nascido das ditas reportagens, transmite: em Portugal, junto com o mito de uma colonização branda e de uma mestiçagem espontânea, persiste o mito de um racismo inexistente. Há falta de dados sobre o peso da cor no nosso país porque, nos censos e recolhas de dados várias, a raça é tabu e não é incluída. Só temos dados sobre o peso da afrodescendência, e já esses são assustadores. Mas se falarmos com o comum português branco, dir-nos-á não ser racista, não haver racismo nas pessoas, muito menos nas instituições, e ser tudo uma pieguice.

Ora, para se resolver um problema, antes há que assumir a existência do problema. Vamos então ver o que nos conta Joana Gorjão Henriques sobre esta realidade.

O problema começa na segregação por bairros, reforçada pelo tal racismo escondido, de que o comum cidadão não tem consciência. Uma pessoa negra, ou simplesmente com uma pronúncia tipicamente associada a afrodescendentes, dificilmente consegue alugar casa num bairro habitado maioritariamente por brancos. Aliás, para a reportagem sobre o racismo na habitação, um grupo de jornalistas fez a experiência e confirmou isto mesmo: ligaram para vários números de anúncios de aluguer de casa e verificaram sistematicamente que, a um negro a pedir informações por telefone diziam que a casa já estava alugada, enquanto a um branco com pronúncia “branca” marcavam uma visita para o dia seguinte.

O problema começa na segregação por bairros, reforçada pelo tal racismo escondido, de que o comum cidadão não tem consciência. Uma pessoa negra, ou simplesmente com uma pronúncia tipicamente associada a afrodescendentes, dificilmente consegue alugar casa num bairro habitado maioritariamente por brancos.

Consequentemente, as crianças negras crescem tipicamente em bairros habitados só por negros, de casas alugadas, mas muitas vezes de construção ilegal, sempre à beira do despejo. Com o salário mínimo a rondar os quinhentos euros, trabalhos muitas vezes precários ou sem contrato e, certamente, sem fiadores, as alternativas a estes alugueres de casas degradadas são inexistentes para a maior parte das famílias afrodescendentes. Os problemas sociais dos bairros são graves, mas elas não têm outra opção e as crianças crescem nestas “condições deploráveis” (como as descreveu Leilani Farha, relatora das Nações Unidas para a habitação) e vão para escolas para onde ninguém quer ir. Nessas escolas, é-lhes transmitida desde pequenas uma baixa expetativa relativamente ao seu futuro escolar e profissional, que em nada ajuda a quebrar o ciclo da exclusão. Para os poucos que chegam à universidade, as dificuldades multiplicam-se no momento de procurar lugar no mercado de trabalho. Nomes tipicamente africanos ou currículos com fotografia incluída são um péssimo cartão de visita e a descriminação torna-se quase explícita.

A agravar esta situação há a questão da nacionalidade que, para os nascidos em Portugal depois 1981 mas filhos de imigrantes africanos, não é garantida. Não são portugueses, apesar de nunca terem posto um pé em África e não conhecerem senão o nosso país. Devido a desconhecimento, incapacidade financeira ou outras razões, muitas vezes os seus pais não tratam da documentação necessária para o requerimento da nacionalidade dos filhos (o que implica uma burocracia tremenda e o pagamento de cerca de 300 euros) e estes jovens, hoje adultos, deparam-se com um grande obstáculo a todos os níveis: arranjar trabalho, alugar uma casa, obter um cartão de crédito, jogar futebol num clube.

«Depois ainda vês casos de futebolistas que facilmente tiveram a nacionalidade, isso cria-te uma revolta. Por exemplo, não consigo vibrar com a seleção – não têm culpa, mas vês alguns que chegam a Portugal e passados dois/três anos têm a nacionalidade e tu que nasceste cá…. Não podes estudar, não podes jogar à bola, então o que podes fazer? É preciso ser forte para aguentar e não ir por outros caminhos.» (Tchino, citado na pág. 56)

Ir por outros caminhos é que aquilo que acaba por acontecer a muitos afrodescendentes, o que tem consequências terríveis, dada a descriminação que também existe a nível da justiça. Com efeito, nas palavras do procurador Alípio Ribeiro, que já esteve na direção nacional da Polícia Judiciária, “há uma justiça para brancos e uma justiça para negros” (p. 33). A desconfiança em relação ao negro é muito maior: “há faixas da população mais vulneráveis, mais ‘perseguidas’ do ponto de vista policial e relativamente às quais é possível uma atuação de força que não será possível em relação a outros” (p. 34). Multiplicam-se as rusgas, as buscas injustificadas, as agressões por parte da polícia de dia ou de noite a cidadãos que estavam simplesmente a circular pela rua e que só por serem negros provocam suspeição, o que causa um sentimento de desconfiança recíproca entre a comunidade negra e a polícia, que é difícil ultrapassar. São precisas menos provas que incriminar um negro do que um branco, as penas para os mesmos crimes são sistematicamente mais leves para brancos do que para negros, e os cidadãos negros tendem a cumprir a pena toda, ou quase, enquanto os brancos são libertados mais cedo. “Parece que há um código para uns e um código para outros”, confessa o procurador João Rato, da comarca de Aveiro.

Os relatos de agressões por parte da polícia no capítulo que Joana Gorjão Henriques dedica ao tema da Justiça são terrivelmente impressionantes. Como é possível haver tamanha violação dos direitos mais básicos por parte dos agentes da autoridade? E como se pode pedir a estes cidadãos, que crescem a ver e sentir na pele estas injustiças, que depois tenham o mesmo desempenho na escola, a mesma confiança nas instituições, a mesma capacidade de compactuar com as subtilezas de um sistema societal que a cada passo lhes transmite uma ideia de não pertença? “Seu preto nojento”, dizem-lhes sistematicamente. “A vossa raça devia ser exterminada”, gritaram os polícias da esquadra de Alfragide que, em 2015, sequestraram e torturaram seis jovens de uma associação que desenvolve projetos de inclusão social no bairro da Cova da Moura, num caso em que, de forma inédita, 18 agentes foram acusados pelo Ministério Público e que está atualmente em julgamento no tribunal de Sintra.

Para resolver este problema há que reconhecê-lo como problema. Neste livro, Joana Gorjão Henriques fez a sua parte. Agora, cabe a todos nós fazermos a nossa.

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.