Racismo como negação de Portugal

Um português racista é o herdeiro cultural daqueles que nunca tiveram a ousadia de partir, daqueles que se negaram a abrir as asas e cumprir Portugal. O racismo é um intruso cultural, e ser racista é negar Portugal.

O que é Portugal e de que se faz um português? Não existem acidentes geográficos que justifiquem a nossa separação do resto da Península. O povo português não tem traços particularmente distintivos. A língua, uma das mais belas do mundo, surge da mesma fonte que as suas vizinhas latinas, enquanto abraça sem pudores o árabe.

O “retângulo” luso, que se espreguiça além Ibéria para abraçar o Atlântico através da Madeira e dos Açores, é fruto da história, e não de uma evidência geográfica, genética ou de uma expressão cultural hermética. Hoje, como em qualquer momento, vale a pena perguntarmo-nos sobre o que é ser português, revisitar a nossa história e tentar traçar um caminho de futuro que seja fiel ao nosso passado.

O fundador de Portugal, ainda que nascido por cá, é filho da união entre um francês e uma castelhana, o que mancha desde as origens qualquer sonho de “pureza de sangue”. Nas suas conquistas, Afonso Henriques valeu-se da ajuda de muitos cruzados europeus – franceses, ingleses, teutões, escandinavos – tendo por cá ficado alguns deles. Dando um salto até à mais ousada página da nossa história, no episódio a que chamamos – talvez de forma demasiado autorreferencial – “Descobrimentos”, é evidente como a contribuição de cartógrafos e navegadores espanhóis e italianos foi essencial.

Uma vez chegados ao Império, pensar numa “homogeneidade cultural” é ainda mais vão: na língua, na arte, na arquitetura, a nossa história é feita de encontro, diferença e integração. Mesmo olhando o passado recente, os nossos “três efes” – Fado, Futebol e Fátima – não têm origem em Portugal: as raízes do Fado são um mistério, levando-nos a perguntar pelas influências escandinavas, árabes e africanas; o futebol embarcou em Inglaterra; Fátima chega-nos do Céu.

Racismo e xenofobia são, não somente exemplos de ideias malvadas, “mal-paridas” e “mal-vindas”, como uma traição à nossa própria história. A miscigenação é mais portuguesa do que a segregação.

Racismo e xenofobia são, não somente exemplos de ideias malvadas, “mal-paridas” e “mal-vindas”, como uma traição à nossa própria história. A miscigenação é mais portuguesa do que a segregação. Para um português, ser racista é ser o herdeiro cultural daqueles que nunca tiveram a ousadia de partir, daqueles que se negaram a abrir as asas e cumprir Portugal. O racismo é um intruso cultural e ser racista é negar Portugal. E o Portugal pós-colonial e membro da UE, partilhando do sentimento de deriva do mundo ocidental, revela-se presa fácil para os idólatras de um passado que nunca foi e as suas monomanias identitárias.

Todos os “-ismos” que vemos renascer ou reinventar-se – nacionalismos, coletivismos, fascismos, tradicionalismos – brotam da propagação irrefreada dos nossos piores sentimentos: medo do desconhecido, desejo de poder, ressentimento, ódio. A preferência pelo “quentinho” do pequeno grupo em detrimento das “correntes de ar” da praça pública, faz com que as nossas ruas se transformem em terreno mais próprio de batalhas campais do que lugares de encontro e de conversa sobre os diferentes pontos de vista e opiniões.

Temos de reforçar a nossa aposta em educar mulheres e homens de cabeça erguida, cujos corpos são suaves ao toque, mas portadores de estrutura óssea ágil e resistente ao confronto. Mulheres e homens que amam Portugal, e por isso mesmo capazes do elogio e da crítica, de fazer declarações apaixonadas e confrontar-se com as perguntas difíceis que a nossa própria história exige. Então seremos capazes de voltar a habitar as ruas e encontrar-nos.

Para o fazer, podemos contar com alguns instrumentos: a empatia, que faz com que o outro passe de estranho a irmão; o amor à verdade, que torna os preconceitos caducos; e a imaginação em fidelidade criativa, que rasga horizontes de diversidade reconciliada. Destes três nascerá a beleza, a harmonia entre diferentes, o transcender da mera natureza e das espúrias rivalidades. Então estaremos mais próximos de, como rezava Pessoa n’A Mensagem, cumprir Portugal.

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.