“Não é que nós queremos nos livrar dos professores, de maneira alguma. É criar uma relação diferente entre alunos e professores, uma espécie de parceria.” D. Albury, 2015.[1]
“Aos professores-pessoas caberá um trabalho de bastidores como ajustar os equipamentos, gerir problemas de disciplina e dar apoio pontual a alunos.” A. Seldon, 2018.[2]
“Um corpo docente reduzido, singular e bem treinado continua a projetar atividades de aprendizagem que podem ser implementadas e monitorizadas por robôs educacionais e outros funcionários (…) ou diretamente por software educacional.” OCDE, 2021.[3]
Nestas declarações – respetivamente, do diretor de uma empresa social que tem atividades educativas, de um académico das áreas da história e da educação, e de uma organização supranacional com enorme protagonismo na educação – percebe-se uma convergência em vários aspetos: para fazer funcionar os sistemas de ensino, que se querem em rápida mudança, continuam a ser precisos professores, mas em menor número; diversas funções destes profissionais são atribuídas a outros não credenciados e a aparelhos tecnológicos; aos professores cabem sobretudo tarefas de gestão das condições de aprendizagem, sendo a sua relação com os alunos transformada.
Como compreender, então, as seguintes declarações, que se afiguram de interpretação contrária?
“Os professores desempenham um papel central no acesso universal a uma educação de alta qualidade e equitativa para todos (…) são o fator que mais influencia o desempenho e a aprendizagem dos alunos.” UNESCO, 2020[4].
“Os professores são o fator mais importante na escola quando se trata de aprendizagem.” OCDE/UNESCO, 2021.[5]
Para fazer funcionar os sistemas de ensino, que se querem em rápida mudança, continuam a ser precisos professores, mas em menor número; diversas funções destes profissionais são atribuídas a outros não credenciados e a aparelhos tecnológicos; aos professores cabem sobretudo tarefas de gestão das condições de aprendizagem, sendo a sua relação com os alunos transformada.
As dúvidas adensam-se ao olhar para o “inevitável” projeto global de transição digital:
“As máquinas ‘inteligentes’, escrupulosamente programadas, serão inspiradoras, não terão quaisquer falhas nos conteúdos a ensinar, usarão as abordagens pedagógicas eficazes, desafiarão os alunos, serão pacientes com eles e administrar-lhes-ão o reforço no momento certo. Também se adaptarão às suas particularidades e proporcionar-lhes-ão um progresso individualizado, seguindo o seu ritmo de aprendizagem. Serão elas que abrirão as portas do conhecimento às novas gerações”. A. Seldon, 2017 [6].
Todas estas citações são posteriores a 2015, ano em que a ONU publicou a “Agenda 2030”, documento que a OCDE diz ter tomado como base para construir o “Modelo Bússola de Aprendizagem”, que apresenta como “humanista” e a que tem dado redobrado impulso desde 2020.
Esta organização alega urgência em transformar a educação para se alcançar o há muito almejado “bem-estar” pessoal e social. Tendo declarado a pandemia da Covid-19 como a “grande oportunidade” para tanto, entendeu ser a “disrupção” o caminho a seguir e a “ubiquidade” a abordagem a privilegiar. Reafirma que, com as tecnologias digitais, a informação está ao alcance de todos, em todo o lado, a todo o momento, pelo que a aprendizagem de tipo escolar, antes confinada à escola, dispensa-a em numerosas situações, ficando, assim, dispensada a interação direta professor-alunos. Em concreto, colocando a tónica na aprendizagem, alia à vertente formal as vertentes informal e não formal, podendo o contexto ser escolar ou não escolar. Os alunos solicitarão apoio de qualquer agente – professor ou não – que se lhe afigure ser uma ajuda para alcançar as “competências” inscritas na sua “bússola” personalizada. Quais navegantes, terão nesta “metáfora” a ferramenta ideal para encontrar o seu caminho próprio num mundo cada vez mais complexo, incerto e volátil.
Face à manifesta desvalorização da escola, que redunda numa séria tentativa de a dissolver com tudo o que lhe dá forma e sentido, justifica-se plenamente a pergunta que o filósofo francês Georges Gusdorf (1912-2000) usou como título do seu livro de 1963: “professores para quê?”[7]. O essencial da sua resposta, tão extensa quão profunda, encontra-se no Capítulo 1: O ensino, o saber e o reconhecimento (páginas 13 a 46).
Contestando os desígnios de uma “pedagogia de trazer por casa”, cujo centro é a tecnocracia da eficácia, marca dos nossos tempos, relembra que toda a educação “prepara para a existência”. Este princípio tem de estar na escola, “lugar privilegiado de civilização”, que poderá levar cada aluno a “alargar e desenvolver o espaço mental”.
Por isso, “o ensino é sempre mais do que o ensino (…) em cada situação particular, ultrapassa em muito os limites dessa situação, para pôr em causa a existência pessoal no seu conjunto”.
Por isso, “o ensino é sempre mais do que o ensino (…) em cada situação particular, ultrapassa em muito os limites dessa situação, para pôr em causa a existência pessoal no seu conjunto”. Longe de estar cientificamente explicado e de ser operacionalizado fora do humano, há tanto nele de conhecido como de desconhecido, de possibilidade como de impossibilidade: “o mistério pedagógico nimba o nascimento de um espírito, a vinda de um espírito ao mundo e a si próprio”; “se cada vida a si mesma se pertence, como transmitir algo de uma existência para outra?”.
Neste reconhecimento, o filósofo francês recusa a redução do professor a “uma espécie de figurante. Na melhor das hipóteses, um medianeiro”. Ele “sabe-se e quer-se diferente de todos os outros que perseguem interesses financeiros e vantagens pessoais”, pois cabe-lhe dar “forma humana” ao conhecimento, procurando “libertar em cada um o pleno exercício da inteligência. Na “odisseia de cada consciência”, o professor potencia o “diálogo aventuroso”: ensina alguma coisa para os alunos aprenderem alguma coisa. A “graça do encontro” escolar não acontece em mais lado nenhum nem em nenhuma outra relação, mas não é esta consciência que a torna segura:
“Pode substituir-se o professor por um livro, um posto radiofónico, um megafone, e não faltam tentativas nesse sentido. No limite, todas as crianças (…) podiam receber, em casa, o ensino de um só e único professor (…). Pode ver-se a enorme vantagem que este sistema ofereceria do ponto de vista financeiro: acabavam-se as escolas, as turmas, os milhares de funcionários [bastaria] uma pequena equipe de instrutores”.
Gusdorf discute nos restantes capítulos esta afirmação que, apesar das suas quase seis décadas, é próxima daquelas com que abri o texto. Então, responde à pergunta que formulou: precisamos de professores porque eles são “os guardiões da esperança humana”.
Face à sistemática e sofisticada sedução discursiva que faz desviar esta consciência, insistir nela é voltar à essência da profissão.
[1] Albury, D. (2015, 22 de Setembro). Precisamos ajudar os professores a mudar de papel. Carta Educação
[2] Seldon, A. (2018). The fourth education revolution: How artificial intelligence is changing the face of education. Buckingham: The University Press.
[3] OCDE (2021). Back to the future of education: Four OECD scenarios for schooling )
UNESCO/International Task Force on Teachers for Education 2030 (2020). Guia para o desenvolvimento de políticas de docência
[5] OCDE/UNESCO (2021). International Task For Teacher Education.
[6] Seldon, A. (2017). Robots will replace teachers in the next ten years
[7] Gusdorf, G. (1968). Professores para quê? Para uma pedagogia da pedagogia. Lisboa: Livraria Morais Editora.
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.