Em 2012, Dieter Haselbach, Armin Klein, Pius Knüsel e Stephan Opitz publicaram um livro na Alemanha que provocou enorme polémica. Chamava-se O Enfarte Cultural e nele se defendia que metade dos teatros e museus do país deviam pura e simplesmente fechar. Ou seja, que metade do orçamento de Estado dedicado à cultura devia desaparecer. A tese fundamental era a de que as despesas com atividades culturais tinham aumentado sem controlo e que ainda assim muitas instituições não conseguiam cumprir a sua tarefa de uma forma aceitável. Justificavam então os autores que faltava dinheiro para investigação, marketing e outras tarefas. Em resumo, argumentava-se que a diminuição do número de instituições poderia melhorar a qualidade das que sobrariam.
O brado foi, então, enorme, com gestores, artistas e cidadãos em protesto contra as propostas teóricas publicadas no livro. A diversidade de manifestações culturais, pôde então ler-se e ouvir-se à saciedade, ficaria gravemente comprometida se as teorias fossem levadas à prática.
Em Portugal, em 2018, uma outra polémica se instalou porque o resultado do concurso da Direção-Geral das Artes (que financia uma boa parte da programação de inúmeras estruturas profissionais ligadas às artes performativas e às artes plásticas) não contemplou este ano várias estruturas que, habitualmente, vinham recebendo estes apoios. Rapidamente o Governo tratou de aumentar o fatia do bolo disponível para subsidiar a cultura e estamos para ver no que vai resultar. Entretanto, os protestos saíram à rua sobretudo com uma reivindicação antiga – que pelo menos 1 por cento do valor do PIB seja destinado à cultura. No caso português, se assim fosse, estaríamos a falar de cerca de 2 mil milhões de euros. O que vai acontecer, de acordo com o orçamento de Estado para 2018, é que a Cultura tem uma despesa consolidada prevista de 480 milhões de euros, cerca de quatro vezes menos do que o que é reivindicado. É importante sublinhar que dentro deste programa são contabilizadas as despesas com a RTP (quase 200 milhões), com a Biblioteca e Arquivo nacionais, com os museus nacionais e com o património cultural e com o cinema, além de todos os custos estruturais (além, claro, dos apoios à criação e produção cultural e artística).
Postos estes dados, é importante colocar a cultura no seu lugar e realçar que na Europa esta emprega sete milhões de pessoas (mais que o dobro do que o setor automóvel) e representa 4,2 por cento do PIB europeu. Nada mau. Em Portugal, mais de 80 mil pessoas trabalham no setor cultural e a contribuição para o PIB nacional é de cerca de 2 por cento (bem abaixo de muitos países da Europa). Fica claro, no entanto, que em Portugal como na Europa a cultura não é um setor menor ou de nicho e compara-se, em termos de peso na economia, à agricultura, à indústria ou ao setor automóvel, na maioria dos países. Além deste bom desempenho económico da cultura, ela está positivamente ligada com o nível de satisfação de vida, com o nível educacional da população e com a capacidade de dar a ver mais longe.
Para mais, o direito à cultura está consignado na Constituição (na nossa e em muitas). O artigo 73º (dedicado à Educação, Cultura e Ciência, num feliz triunvirato) diz, logo no número 1, que “todos têm direito à educação e à cultura”. Concretizando o modo como isso se faz, adianta logo no ponto 3 que “O Estado promove a democratização da cultura, incentivando e assegurando o acesso de todos os cidadãos à fruição e criação cultural, em colaboração com os órgãos de comunicação social, as associações e fundações de fins culturais, as colectividades de cultura e recreio, as associações de defesa do património cultural, as organizações de moradores e outros agentes culturais”.
Naturalmente que a questão do acesso a todos é fundamental. Olhando para as estatísticas (recolhidas na Pordata), podemos tirar interessantes conclusões. No que diz respeito à música, dança e variedades, vemos que o número de espectadores por mil habitantes passou de 18,2 em 1960 para 848,8 em 2016. Mas, o mais curioso é que o número de espectadores por sessão não se alterou muito – o que cresceu exponencialmente foi o número de sessões. Relativamente ao teatro, também se verificou um aumento ainda que não tão expressivo: de 130,1 espectadores por mil habitantes em 1960 para 241,8 em 2016. As visitas a monumentos e museus têm também registado aumentos importantes nos últimos anos (muito também graças ao fenómeno de crescimento do turismo em Portugal).
Ainda que a disseminação geográfica das manifestações culturais e artísticas seja muito maior do que no passado, ainda se regista uma concentração que não é proporcional ao tamanho e à população das cidades de Lisboa e do Porto. As disparidades territoriais foram, aliás, muito criticadas a propósito dos apoios da DG Artes. Assim, as simetrias só tendem a piorar.
O Estado obriga-se, já se disse, a garantir a todos a fruição e criação cultural. Só que o dinheiro não estica e perante o crescimento e reivindicações do setor cultural, as vozes ultrapassam largamente as nozes disponíveis. A solução preventiva do enfarte alemão (escolher menos para dar mais a cada) parece não agradar aos criadores portugueses. Naquilo que é e sempre será, em certa medida pelo menos, discricionário, talvez o acerto possa estar em distribuir dinheiro-semente para que os projetos possam arrancar e crescer, solidificar os frutos. Às vezes, basta um investimento pequeno para dar fôlego a uma ideia nova que inicia a sua marcha. E perante as provas dadas, voltar a decidir. E não, estas coisas não se podem nem devem fazer sem dinheiro. E sim, definitivamente sim, precisamos de cultura (mesmo que não nos demos conta disso).
A cultura é uma das (poucas) coisas que nos distinguem dos animais irracionais que quase nada fazem que não tenha um objetivo concreto, um fim utilitário, normalmente em benefício próprio ou dos mais próximos. A irracionalidade associada à cultura não fica nada bem. Nem aos governantes nem aos artistas.
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.