Porque as pessoas criam escolas privadas na Europa de Leste

Para os nossos companheiros do leste, a liberdade é algo muito recente e por vezes precária. Eles têm muito presente o quanto é importante a sociedade civil educar as crianças e manter viva a história da liberdade. Como disse Maria Montessori “evitar a guerra é tarefa dos políticos, construir a paz é tarefa dos educadores”.

Portugal é um país independente, com um território correspondente ao actual, há quase 800 anos. Por virtude da sua geografia, Portugal passou incólume pelas guerras que assolaram a Europa durante todo o século XX. Quer as duas guerras mundiais quer as múltiplas guerras e conflitos locais. Fomos poupados ao sofrimento e nunca sentimos a opressão estrangeira. Há mais de 40 anos que vivemos em liberdade total e damos esta liberdade por adquirida.

Os universitários portugueses de hoje lêem e discutem conceitos como totalitarismo, genocídio, terrorismo de Estado ou auto-determinação sem que eles ou os seus pais tenham vivido de perto estas situações limite. Muitas vezes esquecemos que as coisas não são assim no resto da Europa. É um privilégio de que beneficiámos mas que não nos deve adormecer para a verdadeira importância de sermos vigilantes na defesa da liberdade e da auto-determinação dos povos. Não só para podermos ajudar outros mas também porque, como dizem os vendedores de produtos financeiros, “ganhos passados não garantem retorno futuro”.

Vem isto a propósito de uma visita impressionante que fiz a Kiev para participar numa conferência de escolas privadas de toda a Europa. Conheci melhor a reforma educativa que está em curso na Ucrânia (vale a pena fazer uma busca por New Ukranian School e ler os documentos disponíveis) e que tem com uma das motivações “apoiar a opção europeia da Ucrânia”. Participei em debates com membros do governo e académicos de todo o mundo. Mas o que mais me marcou foram as histórias de vida de fundadores de escolas privadas para quem o ensino independente foi um grito pela liberdade, uma forma de luta contra o totalitarismo, uma tentativa de garantir que as futuras gerações não passavam pelo que eles tiveram de passar.

O. é uma mulher sempre atenta. Tem um olhar duro e raramente ri. Não fala inglês, o que dificulta a comunicação apesar do esforço do tradutor. É Ucraniana e viu a avó ser levada pelo exército russo. Temeu pela mãe e por si. Estudou e tornou-se professora. O Estado disse-lhe sempre o que pensar, onde trabalhar, como viver. O. viveu no medo, obedeceu e aprendeu a reprimir a raiva (“por isso fiquei com esta cara”). Viveu no medo de falar, de pensar, de resistir. Mas a certa altura ela e muitos outros não aguentaram mais. E uma ligeira hesitação do opressor levou-os a libertar-se. O. decidiu logo fundar uma escola. “Eu fui educada pela escola do Estado a não pensar e a obedecer. Criar uma escola minha para ensinar as crianças a pensar por si, a ser justas e a ser livres era uma obrigação. E acredito que é a única forma de o meu país permanecer livre”. O país de O. está em guerra.

E. é uma mulher forte. Viva. Nasceu numa família de classe média para os padrões de um país da cortina de ferro e estudou tornando-se professora universitária. No início da sua carreira foi convidada a ir dar aulas a uma universidade polaca. Na altura, embora fazendo também parte dos países da órbita soviética, a sociedade polaca era um pouco mais livre que a de E.. Logo no primeiro dia estranhou muito os alunos. Em vez de a ouvirem e aprenderem faziam perguntas. Muitas perguntas. Questionavam algumas coisas que ela dizia. “Pensei para comigo que os alunos polacos eram muito malcriados”. Mas com a sucessão dos dias e das aulas a verdade atingiu-a como um raio. Não eram os alunos que estavam errados; era ela. Não só é possível pensar fora do que o professor diz como é desejável que assim seja! E. voltou para casa e continuou a trabalhar. Mas isto nunca mais a deixou. E ficou preocupada com a sua filha, pequena, que iria em breve para a escola onde lhe ensinariam a obedecer. Acabou por conseguir juntar algum dinheiro. O marido queria que comprassem um apartamento. Ela juntou-se a duas amigas e fundaram uma escola. “Queria ter a certeza de que a minha filha recebia uma educação livre. E, já agora, que o maior número possível de crianças também”. Esta escola fez 25 anos e é uma comunidade orgulhosa. Aderiu logo à rede de escolas UNESCO e celebra parcerias com todas as escolas estrangeiras que consegue. “Os alunos têm de viajar e conhecer outros. Temos de conseguir viver em paz…”. O país de O. está em guerra.

Conheci ainda M.. Um tipo bem-parecido, pouco mais velho que eu, com um olhar vivo. M. cresceu num país ocupado. Quando chegou a altura de escolher o que estudar, decidiu ir para professor de inglês. Tinha uma intuição que isso lhe poderia dar acesso ao mundo para lá do muro. Cumpriu o serviço militar num exército estrangeiro e foi trabalhar para onde o Estado lhe dizia em cada momento. Até que um dia o muro caiu. Ele e os amigos não hesitaram. Agarraram a liberdade com as duas mãos e começaram a construir uma nova sociedade. Livre. A maioria dos amigos foi para a política, a advocacia, os negócios. Ele fundou uma escola. “Passei toda a minha vida a fazer o que o Estado me mandou. Quis ensinar às crianças que isso é errado!”. O país de M. é membro da União Europeia.

Estes países não têm a geografia e a história de Portugal. Para estes nossos companheiros do leste, a liberdade é algo muito recente e por vezes precária. Eles têm muito presente o quanto é importante a sociedade civil educar as crianças e manter viva a história da liberdade. Como disse Maria Montessori “evitar a guerra é tarefa dos políticos, construir a paz é tarefa dos educadores”.

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.