“Em regra, relatamos casos (…) que correm bem. Por vergonha, não contamos os que correm mal e, muito menos, os descrevemos.” Salgado & Henriques, 2002, 69.
“É fundamental considerar a abordagem comportamental e humanista dos erros para se obter um mundo melhor.” Senders & Moray, 1991, 57.
Em áreas profissionais como a saúde e a aeronáutica, o erro humano tem sido ampla e profundamente estudado do ponto de vista conceptual, técnico e prático, com benefícios evidentes no tratamento que se deve fazer dele, sobretudo no que respeita à sua prevenção, detecção e superação. Na sombra tem ficado o esclarecimento da teia afectiva que o envolve. É preciso mudar a atitude face ao erro, diz quem se preocupa com ele, admitindo que a tarefa é difícil. É o caso do ensino.
1. Não tendo a palavra “erro” um único sentido, tende a designar o desvio, mais ou menos pronunciado, de uma norma considerada verdadeira, a qual, por isso mesmo, deve ser seguida. A boa intenção e o empenho que subjaz à acção escolhida para tanto, afasta-a tanto do dolo como da negligência. Se pensarmos a frio, sendo o erro resultado de uma atitude responsável e dedicada, não deveria ter nas pessoas envolvidas uma ressonância negativa. Não é, todavia, assim: o ecléctico jornalista francês Jean-Pierre Lentin (1994, 7) declarou-o como “sub-produto um pouco nauseabundo” e o distinto médico português João Lobo Antunes (1996, 77) descreveu-o como “tema cinzento na cor, sinistro no perfil e amargo no travo”. Por certo, estamos dispostos a considerar estas brevíssimas palavras como particularmente fortes e autênticas. Revelando o sentir de quem entra no cenário do erro, interpelam-nos e incomodam-nos. A turbulência que causa nas pessoas, mesmo que dependente das circunstâncias, gravidade e consequências do cenário, é bem real. Um misto de vergonha e culpa, aliado ao retraimento irreflectido, impelem ao silêncio e à fuga sob diversas formas, a tentativa de esquecimento, a ocultação e a negação estão entre elas. No fundo, ninguém deseja encarar o erro e muito menos, descrevê-lo e analisá-lo. De pouco ou nada nos conforta invocarmos o óbvio: que, como humanos somos falíveis, não conseguindo escapar ao erro; e que ele constitui, afinal, uma fonte inestimável de saber, oferecendo-nos a possibilidade de melhorar o que fazemos.
Um misto de vergonha e culpa, aliado ao retraimento irreflectido, impelem ao silêncio e à fuga sob diversas formas, a tentativa de esquecimento, a ocultação e a negação estão entre elas. No fundo, ninguém deseja encarar o erro e muito menos, descrevê-lo e analisá-lo.
2. Karl Popper ajuda-nos a perceber o fenómeno que o erro é no quadro das profissões intelectuais. Disse-nos que a ética pela qual se pautaram durante muito tempo, sustenta a autoridade do especialista, que se julga possuir um saber total, inabalável e definitivo, assim, “proíbe que se cometam erros” e, se eles ocorrerem, que “proíbe que sejam confessados”. Daí a tendência, individual e corporativa, de encobrimento e intolerância: “dissimular, a sua falibilidade (…) dissimula também a falibilidade dos colegas que se encontram nas mesmas circunstâncias (…), esperando, claro está, que estes o protejam a si” (Popper, 1992, 181), “uma espécie de conspiração (…) mas ninguém o admite de bom grado” (Popper, 1999, 97). Por esta razão, propôs uma nova “ética-prática”, assente na “racionalidade crítica” cujos pressupostos são, no essencial, os seguintes: o saber de que dispomos para tomar decisões é incompleto e está sujeito a revisões, além disso ninguém consegue dominar todo o saber que se tem por verdadeiro num certo momento. Mas é com base no uso reflectido daquele de que dispomos que temos obrigação de procurar, por todos os meios, evitar errar. Mesmo assim, neste ou naquele passo da acção, hão-de surgir erros. O estado de permanente vigilância é fundamental para os identificar, mas a determinação de querer aprender com eles não é menos relevante. Explorar os erros “sob todos os ângulos, para irmos até ao fundo”, de modo tão impessoal quanto possível, é um princípio válido quando os identificamos na nossa acção ou quando outrém o faz, e quando os identificamos na acção de outrém. Torna-se evidente que precisamos uns dos outros para descobrirmos e corrigirmos erros. Se percebemos isso, integraremos a virtude que é o agradecimento sincero no nosso modo de ser.
3. Em áreas profissionais relacionais vocacionadas para “cuidar do outro”, certos erros podem ter efeitos contraproducentes e, mesmo, trágicos. É o caso do ensino, pelo que seria de esperar que se lhe prestasse especial atenção, até tendo em conta as mudanças que, mais recentemente, se insiste em imprimir-lhe. Entendendo que não é assim, a partir do pensamento de Karl Popper, aponto dois considerandos.
O primeiro prende-se com a subsistência na falácia na docência perfeita: o bom professor é capaz de enfrentar e resolver toda e qualquer situação, por mais complicada e difícil que se apresente.
O primeiro prende-se com a subsistência na falácia na docência perfeita: o bom professor é capaz de enfrentar e resolver toda e qualquer situação, por mais complicada e difícil que se apresente. Sendo esta crença, por si mesma, preocupante, há que contar com o facto de remeter para o plural: são múltiplos os modelos de perfeição que se impõem, alguns com pontos em comum outros em contradição, tendem a ser veiculados nos tons sedutores da certeza absoluta. Porém, caso sejam submetidos a escrutínio, dificilmente se lhe pode reconhecer estatuto confiável e altruísmo educativo. Produzidos por instâncias empresariais e políticas, ou delas dependentes, esses modelos são orientados para uma realização padronizada e eficaz, com exigências de infalibilidade, os perfis pragmáticos de desempenho que os operacionalizam facultam a linear prestação de contas exigida aos professores. O segundo considerando prende-se com a adequação desses perfis a “sociedades litigiosas e implacáveis e que, além disso, tendem a atribuir involuntária ou malevolamente, a culpa a alguém por qualquer evento indesejável” (Senders & Moray, 1991, 33). Em ambientes deste tipo, com diversas camadas, até chegar à escola, “passa-se por se ser um professor competente escondendo os momentos de pânico ou de desencorajamento; passa-se por se ter uma forte personalidade quando não se contam as angústias, o aborrecimento, o cansaço, ou só dando conta disso de um modo ritualizado (…). O professor mostra a sua solidez quando não conta que um fracasso profissional pode impedi-lo de dormir, fazê-lo adoecer ou levá-lo à depressão” (Perrenoud, 1995, 224-225).
A terminar, volto a Lentin (1994, 210) pela actualidade das suas palavras: “para o professor, o erro é um horror (…) mas deveria ser exactamente o contrário: deveria aproveitar cada erro para reflectir (…) em suma, o erro ensina a pensar, não a repisar”. Pelo que acima disse, quem se preocupa com a educação, no sentido humanista clássico, precisa de se comprometer com essa mudança, através do estudo académico do erro no ensino, do seu tratamento na formação de professores e da edificação de uma cultura “aberta” de escola. Se “errar é próprio dos homens”, encobri-los constitui “o mais grave pecado intelectual”, escreveu Popper. A atitude crítica é, antes de mais, uma responsabilidade que temos o dever ético-deontológico de assumir. Decliná-la ficando indiferentes a esse “pecado”, é nada menos do que trágico para a consciência humana.
Referências bibliográficas
Lentin, J. P. (1994). Je pense donc je me tromp. Les erreurs de la science de Pythagore au Big Bang. Albin Michel.
Lobo Antunes, J. (1996). Um modo de ser. Lisboa: Gradiva
Perrenoud, P. (1995). Ofício de aluno e sentido do trabalho escolar. Porto Editora.
Popper, K. (1992). Em busca de um mundo melhor. Fragmentos.
Popper, K. (1999). O mito do contexto: em defesa da ciência e da racionalidade. Edições 70.
Salgado, M. & Henriques, R. (2002). Um caso inesquecível. Saúde Infantil, 69-77.
Senders, J. W. & Moray, N. P. (1991). Human error: cause, prediction and reduction. Lawrence Erlbaum Associates.
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.