Para que serve a literatura?

O estudo da literatura ajuda a uma vivência mais consciente da humanidade e do humanismo, ajuda ao desenvolvimento de cidadãos mais competentes compassivos e conscientes.

Num contexto em que a demonstração pública da consciência crítica social se manifesta no imediatismo da turba que grita “Barrabás” nas redes sociais ao sabor da maré, é urgente a presença do hábito da reflexão informada e fundamentada. Neste contexto, o estudo da literatura é uma das valências que podem ajudar o cidadão a ser menos insciente.

Estudos recentes indicam que aproximadamente 60% dos jovens estão em atividade nas redes sociais mais do que quatro horas diárias. O modelo de interação nas diferentes redes sociais está assente num juízo crítico (que nem é juízo e muito menos é crítico) da limitação da visão humana a uma dimensionalidade binária de gosto / não gosto; concordo / não concordo, correspondendo cada um destes termos, na sua limitação, a uma das duas palas asininas. A subjetividade, a dúvida, a inquietação perante o desconhecido não podem estar reféns da escolha entre o like ou a continuação do scroll. Aquilo a que Vigotski chamou as funções psíquicas superiores (memória, consciência, perceção, pensamento…) não podem atrofiar-se em horas e horas diárias de redes sociais que pedem resposta imediata a estímulos imediatos, cuja intermediação é de segundos. Acompanhar os vinte e poucos segundos de um reel é um luxo. Ou a atenção se consegue em cinco segundos ou há uma transição para a procura do estímulo seguinte. Falamos de segundos, breves segundos. Este imediatismo garante a ilusão da certeza absoluta, porque é uma certeza baseada na opinião pessoal que, tendo toda a legitimidade de expressão, não pode subjugar o saber científico. A abundância de certezas absolutas na estreiteza do “gosto / não gosto” aumenta e faz medrar o populismo de causas e correntes, é adubo para lideranças populistas com os perigos sociais inerentes. Temos multidões (e não me refiro apenas aos jovens) impreparadas e precipitadas a ditar sentenças implacáveis.

A abundância de certezas absolutas na estreiteza do “gosto / não gosto” aumenta e faz medrar o populismo de causas e correntes, é adubo para lideranças populistas com os perigos sociais inerentes. Temos multidões (e não me refiro apenas aos jovens) impreparadas e precipitadas a ditar sentenças implacáveis.

Tudo isto (particularmente estas sentenças imediatas) conduziu à galopante “cultura do cancelamento”, fruto de boas intenções iniciais e transformada, pela ação do “wokismo” (também ele bem-intencionado na génese) numa manifestação totalitária de extremismo bafiento, consoante a causa e o espartilho ideológico de circunstância.

Este imediatismo promove a obliteração da memória e a manipulação da História. A este propósito, veja-se a crescente descontextualização e traição semântica de termos como “genocídio” ou a nova radicalização assente nos denominados argumentos / acusações “ad hitlerum”, em que a apodo de “nazi” passou a ser utilizado com uma descaracterização tal que tem como consequência a banalização e relativização da Shoa / Holocausto (a que Torga chamou o “maior escarro” da história da humanidade).

Assim, esta democratização da opinião pelas redes sociais abre portas a uma saudável liberdade de expressão. No entanto, importa ter bem presente que esta obriga também à responsabilidade de expressão. Esta liberdade deveria estar alicerçada na consciência social e na sustentação argumentada da opinião. Caso contrário, a opinião transforma-se numa espécie de vazio pleno de ruído, de insulto escondido na ignorância ou na ideologia mascarada de ciência. Esta última é particularmente perigosa, porque conduz a que os nossos sentimentos e perceções se sobreponham à verdade.

É neste contexto que se torna, agora mais do que nunca, pertinente o estudo da literatura nas escolas e nas academias. O estudo da literatura implica, a priori, antes do juízo crítico sobre a obra literária, um conhecimento da época da escrita, do tempo histórico, do contexto social em que foi escrita. Esse estudo pede que se perceba a mundividência do autor, quem o influenciou, que doutrinas políticas ou pensamento filosófico o ajudaram a construir o olhar para o mundo. Implica que se tente perceber qual a sua relação ou falta de relação com o divino. Ou seja, o estudo do texto, na literatura, não existe sem o estudo do contexto. Não há observação e análise da obra sem o estudo do tempo e do modo, do paradigma e do sintagma. Isto é, convocam-se saberes da história, da filosofia e da religião para interpretar criticamente a obra literária. Só depois de todo este processo, moroso e reflexivo, é possível avançar para um juízo crítico da obra literária.

O estudo da literatura (em disciplinas do ensino secundário como Português, Literatura Portuguesa ou Clássicos da Literatura), com toda a convocação de saberes inerente, é importante para que aqueles que a estudam (seja no ensino secundário ou universitário) possam ter a lucidez da rejeição do imediato. Não é um saber estagnado e distante da realidade, escondido numa torre de marfim de academismos intocáveis. É um saber atuante e atual, na medida em que, sobre os temas mais fraturantes que atualmente vivemos, traz contributos pertinentes à reflexão.

A este respeito, atentemos sobre questões como o empoderamento feminino ou identidade de género. É possível que um aluno que estude literatura no ensino secundário, no final de dois anos de trabalho, tenha uma visão diacrónica sobre a condição feminina. Visão esta que vai de uma objetificação mais ou menos consciente (cantigas de amor ou lírica camoniana) até à profunda consciência da personagem Paula Vicente (“Um Auto de Gil Vicente”, de Almeida Garrett) sobre o injusto papel que a sociedade patriarcal impunha à mulher, passando pela complexidade e ambiguidade social e emocional da personagem Maria dos Prazeres (“Uma Abelha na Chuva”, de Carlos de Oliveira). Nesta temática, importa salientar a relevância cultural que está subjacente à atualização na lírica camoniana da donna angelicata de Petrarca, tal como a relevância do neoplatonismo, da cosmovisão de Pico della Mirandola ou do humanismo de Marsílio Ficino, para a compreensão do pensamento camoniano. Aliás, temas como a identidade de género ou a complexidade de género ganham um patamar de reflexão já bastante consciente se abordados aquando do estudo da obra “Menina e Moça”, de Bernardim Ribeiro. Obra que pode ser trabalhada em diálogo e comparação com outras obras artísticas para além das literárias, como, por exemplo, o filme “Johny Guitar”, de Nicholas Ray, levando à reflexão sobre a subversão do estereótipo masculino / feminino.

Num âmbito diferente, mas também pertinente para a leitura da atualidade, a temática da portugalidade, da identidade portuguesa, da herança greco-latina e judaico-cristã plasmada no sentido messiânico do mito sebastianista é também relevante para a formação do cidadão não desenraizado, mas aberto ao mundo. O estudo da literatura, através de Almeida Garrett (“Frei Luís de Sousa”) e Fernando Pessoa (“A Mensagem”), permite a abordagem do sebastianismo respetivamente como mito infecundo e mito fecundo para o futuro de Portugal. Iniciar cedo este processo de reflexão é essencial, ajuda a que, mais tarde, haja cultura e consciência suficientes para não cair em nacionalismos exacerbados ou em descabidas derivas de culpa ocidental, provenientes da ignorância e da falta de consciência do ethos português.

Ainda a título exemplificativo sobre pertinência do estudo da literatura para a leitura da atualidade, numa época em que o conflito entre Israel e a Palestina está agudizado e faz parte de uma realidade cada vez mais (bi)polarizada e radicalizada, a possibilidade de estudar “O Auto da Lusitânia”, de Gil Vicente, é um bom ponto de partida para a compreensão da questão judaica em Portugal e na Europa. Além da disciplina de Literatura Portuguesa, há a disciplina de Clássicos da Literatura, em que, com base na primeira parte do filme de Alain Resnais “Hiroshima, Meu Amor”, pode ser feito o estudo da memória histórica presente na literatura decorrente da sobrevivência aos campos de concentração, através de Primo Levi (“Se Isto é um Homem”), Elie Wiesel (“Noite”) ou Imre Kertész (“Sem Destino”). Este tipo de estudo e contextualização é relevante para combater o antissemitismo ou contribuir para cumprir aquilo que Theodor Adorno considerou ser a grande missão da educação: evitar a repetição de Auschwitz.

Ainda a título exemplificativo sobre pertinência do estudo da literatura para a leitura da atualidade, numa época em que o conflito entre Israel e a Palestina está agudizado e faz parte de uma realidade cada vez mais bipolarizada e radicalizada, a possibilidade de estudar “O Auto da Lusitânia”, de Gil Vicente, é um bom ponto de partida para a compreensão da questão judaica em Portugal e na Europa.

Ainda neste diálogo entre a literatura e outras expressões artísticas, como é possível considerar despicienda a possibilidade de trabalhar em paralelo o olhar poético de Ruy Belo, William Carlos Williams, António Reis ou José Tolentino Mendonça com olhar fotográfico de Vivian Mayer ou Dorothea Lange? Esta abordagem permite ver os pormenores que nos rodeiam com a capacidade de ver para além dos pormenores que nos rodeiam, transformar o aparentemente insignificante em algo significativo.

Esta necessidade de humanizar pela cultura, pelo olhar consciente, pode ainda chegar à sensibilização para a urgência de um despertar para a espiritualidade e para a interioridade. Mais uma vez, como mero exemplo, acrescenta-se que, aquando do estudo de Rilke (“Cartas a Um Jovem Poeta”), pode ser feito o paralelismo com o método de reflexão e procura da consciência mais profunda do “eu” que Santo Inácio de Loyola apresenta nos “Exercícios Espirituais”.

A todos estes exemplos, poder-se-iam juntar muitos e outros tantos (P. António Vieira, Camilo Castelo Branco, Antero de Quental, Eça de Queirós, Camilo Pessanha, Raul Brandão…) que muito contribuem para uma urgente qualificação intelectual e cultural, longe da reação imediata, insensata e redutora que é estimulada pelo tiktokismo vigente.

Em suma, não há qualquer sustentação cultural na urgência do imediatismo. Dizer apenas “gosto ou não gosto” não é exercício de qualquer tipo de consciência crítica. Tolentino de Mendonça explica, numa das suas reflexões, que o peregrino, vai per ager, pelos campos, experiencia o real, envolve-se (e esta é a palavra) com a realidade. O turista passa pela realidade, fotografa, mas onde o peregrino tem o envolvimento o turista tem a visão da superfície, da epiderme. Acontece que o conhecimento não é epidérmico, obriga à peregrinação, ao tempo, à pesquisa, à dúvida, à inquietação e ao esforço. Num contexto social que deveria exigir o “peregrino” na leitura da realidade, valoriza-se o “turista” no Twitter (agora X).  Onde está o tempo do silêncio, da reflexão, da fruição, do conhecimento e da construção do saber? Onde está a vivência do tempo do leitor de realidades, do intérprete de realidades, para poder construir realidade? O estudo da literatura ajuda a uma vivência mais consciente da humanidade e do humanismo, ajuda ao desenvolvimento de cidadãos mais competentes compassivos e conscientes. Ajuda, enfim, a que se cumpra a missão que Paulo VI nos deixou: “Homens, sede Homens!”

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.