Os pequenos atos de não discriminação

Os negacionistas dizem que não existe racismo, xenofobia e homofobia (e muitas outras discriminações), pelo menos de forma estrutural. Talvez os recentes assassinatos em Espanha e Portugal nos ajudem a provar que não é bem assim.

Samuel Luiz tinha 24 anos e era assistente de enfermagem. Estava com alguns amigos e saiu da discoteca para fumar, em Galiza, Espanha. Uma amiga ligou-lhe e atendeu por videochamada. Foi atacado por um homem, que alegou que o estava a filmar, proferindo insultos homofóbicos. A violência começou. Segundo testemunhos, trouxe mais alguns amigos para continuar a espancar Samuel. Samuel perdeu a vida em julho de 2021 e o seu homicídio está a ser investigado.

Julho de 2020. Bruno Candé era um ator e estava a transitar numa rua de Lisboa, perto da sua casa. Foi abordado por um homem idoso, conhecido pelo seu racismo crónico e constantes provocações. Afirmou: “Vai para a tua terra, preto! Tens toda a família na senzala e devias também lá estar (sic despacho do Ministério Público.) E entre outros impropérios, disparou o seu revólver, matando Candé. Numa decisão histórica em Portugal (pelo peso da pena e a rapidez do processo), o homicida foi condenado a 22 anos de prisão efetiva (em julho de 2021), sendo que o ódio racial e a ausência de remorsos serviram para agravar a sentença.

Em 1995, Nelson Mandela, no seu célebre livro Long Walk to Freedom afirmava que “Ninguém nasce a odiar outra pessoa pela cor da sua pele, sua origem ou religião. Para odiar, as pessoas precisam de aprender, e se podem aprender a odiar, podem ser ensinadas a amar.”

Um ano separa estes dois incidentes. Tinham nacionalidades diferentes, profissões nada semelhantes. Um estava sozinho, outro estava com amigos. Um tinha cabelo louro, outro era negro. Mas ambos tinham em comum ecossistemas de racismo, xenofobia, homofobia, que levaram às suas mortes. Em 1995, Nelson Mandela, no seu célebre livro Long Walk to Freedom afirmava que “Ninguém nasce a odiar outra pessoa pela cor da sua pele, sua origem ou religião. Para odiar, as pessoas precisam de aprender, e se podem aprender a odiar, podem ser ensinadas a amar.” As pessoas não nascem discriminatórias. Não existe um gene ou uma doença congénita que leva uma pessoa a odiar outra por características como a cor da pele, a etnia, a nacionalidade, a religião ou a orientação sexual. O ódio e a violência instigam-se, aprendem-se.

Por esse motivo, os incidentes com o Bruno e o Samuel não podem ser vistos como atos isolados. O discurso do ódio e o incitamento da violência têm raiz em muitos problemas estruturais, desde a falta de educação de direitos humanos transversal a todos os ciclos de ensino, a sistemas de justiça lentos e deficitários, à subida ao poder de partidos populistas que incentivam o ódio, a questões de herança colonial não resolvidas, ao facilitismo da violência como meio de resolver todas as iniquidades, percecionadas ou reais. E quem tem a culpa disso? Toda a gente.

O discurso do ódio e o incitamento da violência têm raiz em muitos problemas estruturais, desde a falta de educação de direitos humanos transversal a todos os ciclos de ensino, a sistemas de justiça lentos e deficitários, à subida ao poder de partidos populistas

Quando uma pessoa cresce a pensar que a outra é diferente e inferior, só porque tem outra etnia ou orientação sexual, cor ou religião, toda a sociedade falhou. Falhou a educação parental, por não transmitir valores de humanismo; falhou a escola, por não conseguir ensinar o amor e respeito ao outro; falhou o Estado por não ser vigilante dos movimentos perigosos e reacionários; falhou a justiça porque não condenou veementemente com sentenças dissuasoras; falharam as instituições públicas que não salvaguardaram os direitos; falharam os grupos de ativistas por não terem conseguido mobilizar a sociedade para a inalienabilidade dos direitos humanos; falharam os media, porque não conseguiram informar; falhou o ecossistema que encorajou a violência como solução. E por isso mesmo podemos e devemos afirmar que as questões discriminatórias são questões estruturais.

Enquanto as pessoas forem apresentadas como números, ou parte de grupos difusos e anónimos, a violência grassará.

Os tratados e grandes documentos de direitos humanos são ancorados na empatia. Com empatia não existe discriminação e violência. Enquanto as pessoas forem apresentadas como números, ou parte de grupos difusos e anónimos, a violência grassará. Enquanto as pessoas foram instruídas com não-factos, a violência grassará. Enquanto houver apoio político e popular a grupos discriminatórios, a violência grassará. Enquanto olharmos para o Samuel exclusivamente como gay e o Bruno apenas como negro, estamos a ajudar os teorizadores do ódio. Estamos a ajudar a esquecer que, por detrás da cor da pele e da orientação sexual, está uma pessoa plena de direitos, o filho/a de alguém, o ente amado de várias pessoas. Está uma vida humana de valor imensurável, que ceifada pelo ódio não realiza o seu potencial.

Por isso, as histórias do Samuel e do Bruno não são histórias excecionais. Fazem parte dos mesmos ecossistemas que permitem ao governo da Birmânia ordenar o extermínio dos Royinga, ou o governo da Hungria passar legislação atentatória aos direitos humanos, de forma regular. O discurso do ódio infesta e cria purulência. Multiplica-se e atrai aqueles que não desenvolveram pensamento crítico ou que estão inundados de uma vida de não-factos. Estereótipos e preconceitos materializados em violência. E a violência não é só física. É psicológica. São as micro agressões, as piadas que são “inocentes”, as atitudes diárias que fazem as pessoas sentirem-se deslocadas, excluídas. É ser cigano e ver que o lojista colocou sapos para  dissuadi-los de entrar, ser negro e passar todos os dias pela placa ‘empregado precisa-se’ quando há três semanas nos tinham dito que o empregado estava selecionado, é ser sikh e usar turbante e ver as pessoas comentarem baixinho que deve ser terrorista e a afastarem-se para outro lugar no comboio. Há muita ignorância, muito ódio, muita falta de empatia nestes gestos.

Voltando à premissa de Nelson Mandela, tomemos as suas palavras como um plano de ação. Se o ódio pode ser ensinado, também o amor e a empatia o podem ser. Em vez de estarmos de braços cruzados à espera que “alguém” faça alguma coisa, podemos agir. Podemos ser os pais que explicam aos filhos que as pessoas são medidas pelos seus valores e ações e não pela cor da sua pele. Podemos ser os empregadores que fazem seguro e contrato às trabalhadoras domésticas. Podemos ser as pessoas que garantem que a organização onde trabalhamos promove e encoraja a diversidade. Podemos ser as pessoas que entendem que as pessoas vulneráveis precisam de apoio e não de exclusão. Podemos não só não compactuar com atos discriminatórios, mas denunciá-los e combatê-los. Podemos promover a empatia em todas as nossas interações. Podemos fazer pequenos atos diários que transformam a sociedade. Uma pessoa de cada vez. Para que daqui a dez ou vinte anos, vejamos diferenças substanciais e a não discriminação não seja um desejo utópico de meia dúzia de pessoas.

Sem o empenho de todos, os populistas reinarão. O discurso de ódio propagará como um incêndio de verão. Múltiplas gerações serão invadidas pelo desejo da violência contra o outro mais escuro, de outro país, de outra orientação sexual, com uma religião diferente. Ensinar a empatia é assim crucial para prevenir a violência do ódio. Porque a dor todos entendemos, só não é tão claro quando somos nós que a infligimos ou deixamos impune quem o faz.

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.