Tinha notícia de pessoas que se confessavam a padres estrangeiros. Era o meu sonho. Tivesse eu conhecido esses padres e era hoje santa, é o que vos digo. Padres suecos de preferência: ter-lhes-ia dito tudo, coisas que nem ao Diabo se confessa, não é como se diz? Pois a um padre sueco teria confessado todos os meus piores pensamentos, atos e omissões. Mas não, os padres que me ouviram conheciam-me bem demais para isso. O padre João e o padre António, ora um dia estavam a dar-me recados de Deus Nosso Senhor no segredo do confessionário, para eu me portar bem e ser mais amiga dos meus irmãos, como no outro dia estavam a almoçar em casa dos meus pais, ali mesmo à minha beirinha. Como se não se lembrassem dos meus terríveis pecados. Impossível ser-se tão esquecido, pensava eu.
Pelo menos duas vezes por ano lá íamos nós em fila ao confessionário, como quem ia ao dentista. Nunca decorei o Ato de Contrição, como não há maneira de decorar as classes e as ordens dos números – há limitações que nos acompanham uma vida inteira. “Vá, então reza lá a versão curtinha”. E eu, corada, atrás daquela janelinha do confessionário e em pânico que me ouvissem na fila, lá desbobinava a ladainha. O cheiro a cera na madeira escura contribuíam para a solenidade do momento e para o nervoso. “Vamos lá, há quanto tempo não te confessas?” E pronto, começava logo a pecar: “Há dois meses, mais ou menos”, mentia eu. Mas era de festa em festa que me confessava, no Natal e na Páscoa, e já era muito a ver pelo suor nas mãos. Também não tinha pecados para muito mais. O exame de consciência – como o próprio nome indica – dava-me imenso trabalho e como todos os exames que faço, estudo na véspera. Neste caso era na fila que trocava pecados com a minha irmã como quem troca cromos, éramos cábulas na confissão: “Olha, descobri um novo! Inveja.” O que é isso? Ela explicava-me que era ficar triste e até zangada por não termos uma camisola igual à de uma amiga qualquer, por exemplo. “Sei lá, inventa!”. Um pecado novo fazia as maravilhas de uma criança. Mas tinha de ter um para a troca. E ficávamos assim, a debater baixinho novos pecados que arejassem a lista dos de sempre, assim como quem acrescenta água na sopa. Mentir, dizer palavrões, roubar chocolates, adormecer sem rezar, não estudar, bater nos irmãos e desobedecer, eram pecados clássicos, enfadonhos. Também combinávamos não os dizer pela mesma ordem, com medo que o padre desconfiasse da fraude. “Olha, diz que pensas em fugir de casa – é um pecado por pensamento”, elaborado, portanto. Nunca me passou pela cabeça fugir de casa, mas convenhamos que é um pecado que dá substância a qualquer confissão em qualquer idade. Já os pecados sérios e verdadeiros, ficavam entre mim e Deus, não fosse o padre João aparecer a almoçar no dia seguinte.
Aos sete anos, o confessionário era o que me valia. Ter ali o padre fechado e trancado, sem me ver corar, aliviava a pressão e tornava possível repetir o palavrão novo que tinha aprendido. Fosse eu criança católica nos dias de hoje e garanto que nem sob tortura diria cara a cara a um padre a quantidade de ordinarices que o padre João ouviu da minha boca. Coitados dos miúdos, é o que eu acho, alguém lhes dê um confessionário no Natal. “Então diz lá?” E eles ali, como se estivessem num café, sem a portinhola a protegê-los da vergonha. Eu seria certamente protestante nestas condições.
É Deus quem nos ouve, o padre é só um instrumento e esquece-se logo a seguir de tudo o que ouve – repetia a minha consciência, a minha mãe, a catequista e todos aqueles a quem eu falava desta problemática de ter um padre entre mim e Deus como veículo das minhas maldades. Pois sim, mas Deus não me intimidava, já os padres que não fossem suecos, sim. Coitadinhos. E quando eles abanavam a cabeça desolados? “Olha que Jesus fica muito triste contigo, tens de ser boazinha”. Jesus triste comigo, será que ele tem tempo para isso? E imaginava Jesus a parar tudo o que estava a fazer por causa dos meus palavrões e a levar a mão à boca, chocado com as minhas mentiras. Não me fazia sentido, com tanta fome que há no mundo e aquilo que O vai chatear é eu não ter lavado a loiça? Mas o padre João era padre, não era pedagogo.
Percebi que cada confissão é um novo regresso do Filho Pródigo – que somos sempre nós – ao Pai, que nos espera de braços abertos sem julgamentos, perguntas ou desilusões.
Era pela penitência que se aferia a qualidade da confissão: quanto mais Pais Nossos e Avé Marias, melhor. Queria dizer que os nossos pecados eram coisas sérias, de gente grande. “Então, quanto é que te tens de rezar?”, perguntávamos uns aos outros, em jeito de competição. E pronto, ficávamos assim de contas feitas e Deus já podia voltar a preocupar-se com coisas mais importantes. Entre os pecados que nem às paredes confessávamos, os que inventámos, aquilo que sofremos na fila e na confissão e aquilo que rezámos, alguma coisa ficava. E Deus, pelo menos, divertia-se.
Mas a verdade é que a confissão não me fazia sentido. Se Deus perdoa sempre, se é infinitamente misericordioso, se me ama mais do que a minha própria mãe, porque é que eu tenho de Lhe pedir desculpa e ainda por cima através de um padre? Além disso, se Ele sabe tudo o que eu fiz, se Ele me conhece melhor do que eu me conheço, para quê esta trabalheira toda? Coitado do padre João. Lembro-me de ter pena das maratonas que o padre João fazia na altura do Advento e da Quaresma a ouvir as velhinhas que confessavam a vida inteira sem olhar à fila a crescer. E nós à escuta – com sorte ainda apanhávamos ideias para mais um pecadinho novo.
Eventualmente cresci. E foi o que me valeu. Aos poucos fui desaprendendo aquilo que sabia antes de me ensinarem que Jesus tem estados de alma, que se pode desiludir, abanar a cabeça e ficar triste. Intimidar-nos e fazer-nos sentir vergonha pelas nossas falhas, imperfeições e pecados sem fim. Demorei a perceber o sentido da confissão, mas cresci. Literalmente, Graças a Deus. Fui percebendo que a confissão é a Reconciliação, primeiro connosco e depois com Deus. Primeiro, a nossa aceitação por aquilo que somos, fizemos e deixámos de fazer, de ser; depois, o arrependimento, e o propósito de não voltar a fazer, de descobrir e cumprir o projeto que Deus nos reservou. O propósito de não voltar a fazer é como subir um degrau, só um de cada vez para se poder subir sem tropeçar. Percebi que cada confissão é um novo regresso do Filho Pródigo – que somos sempre nós – ao Pai, que nos espera de braços abertos sem julgamentos, perguntas ou desilusões. Um Pai que sabe das nossas falhas e imperfeições e se mantém paciente e ansioso à espera dos nossos regressos. E percebi que para termos essa graça, esse Sacramento, é preciso alguém que nos oiça, que nos faça falar, para irmos ao fundo da nossa consciência e organizá-la. Alguém que nos abençoe e que avise o Céu que regressámos. “Tudo quanto ligardes na terra será ligado no Céu; e tudo quanto desligardes na terra será desligado no céu”: um sinal visível de uma realidade invisível. A Reconciliação é mais um abracinho apertado de Deus. Com cheirinho a cera em madeira escura, de joelhos num confessionário ou a passear numa praia, não interessa. O importante é deixar ir a Ele as criancinhas.
Fotografia de: Liane Metzler – Unsplash
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.