Os meus dias mais cinzentos

Questiono-me se a violência não se estará a transformar num tipo de comportamento-padrão dos adeptos desportivos mais fanáticos e mesmo de alguns atletas, treinadores e dirigentes. É urgente escolhermos um novo caminho para o Desporto.

As práticas desportivas, sobretudo os momentos de competição, são ocasiões de festa, de alegria, e claro, momentos de verdadeira fraternidade, de respeito por companheiros e adversários, sempre orientados pela ética, pelo fair-play. E mesmo admitindo que em situações mais acaloradas os ânimos se possam exaltar e a troca de palavras possa azedar, prevalece sempre neste tipo de contendas o verdadeiro espírito desportivo que faz com que as rivalidades clubísticas sejam postas de lado e as bancadas se unam gritando um tremendo “não à violência”.

O que atrás expressei é uma crença minha e de milhares de cidadãos de todo o mundo para quem o Desporto constitui um fator de igualdade, de participação e inserção na vida social, de tolerância, de aceitação das diferenças e de respeito pelas regras, independentemente das capacidades ou interesses de cada um. E é por tudo isto que o Desporto deve ser entendido como uma atividade contrária à violência, à bestialidade, uma atividade acima de qualquer suspeita, despoluída, regulada, incorrupta, elevada, com valores próprios que contribuem para o bem-estar de todos.

Infelizmente o espírito que atualmente envolve o desporto é bem diferente deste. António Bagão Félix refere-se a “um tempo de necrose desportiva” (Jornal Público de 4 de maio 2018) para caracterizar o ambiente que rodeia hoje o Futebol em Portugal. Um ambiente recheado de comportamentos violentos e irracionais. De resto, esta conjuntura patológica e desordenada a que o comentador alude não inclui apenas o “desporto rei”. Por mais incrível que pareça estes comportamentos violentos e de incitamento à violência acontecem um pouco por todo o mundo em praticamente todas as atividades desportivas, dentro e fora dos recintos desportivos, perpetrados por homens e mulheres de diferentes credos e diferentes raças. Em boa verdade, uma verdadeira calamidade se atendermos ao facto destes comportamentos ocorrerem não só nas ligas profissionais, mas também em competições de desporto amador, de desporto universitário e, pasme-se, nas competições dos escalões em formação onde os protagonistas são apenas jovens pré-adolescentes. De resto, surpreende-me a frequência com que gente hedionda, sem escrúpulos, junta à beleza e à grandiosidade do espetáculo desportivo a brutalidade das agressões físicas e a baixeza das injúrias, dos roubos, das manifestações de racismo e outro tipo de agressões infames, impróprias de gente civilizada.

Um recente artigo na revista Visão refere que entre agosto de 2016 e abril de 2017 foram denunciadas 43 agressões a árbitros de futebol e futsal das quais 14 em escalões abaixo de iniciados (sub-15). O título do artigo é tristemente eloquente: “Números Que Envergonham”. Ainda mais recentemente, dois outros episódios de agressões perpetradas contra os árbitros de um jogo de futebol nos Campeonatos Universitários de 2018 e a “batalha campal” entre jogadores e adeptos de equipas de rugby num dos jogos da meia-final do Campeonato de Seniores Masculinos da presente época ampliam o rol de vergonhas desportivas nacionais. Isto para não falar dos trágicos acontecimentos de Alcochete nem dos múltiplos relatos que nos vão chegando a propósitos de outros atos violentos exercidos por treinadores e por elementos de equipas técnicas sobre atletas de diferentes modalidades, géneros e escalões competitivos.

Confrontado com estes episódios vergonhosos os meus dias ficam cinzentos, tristes, depressivos. Questiono-me então se a violência não se estará a transformar num tipo de comportamento-padrão dos adeptos desportivos mais fanáticos e mesmo de alguns atletas, treinadores ou dirigentes desportivos mais rudes, para não lhes chamar outra coisa. Será possível levar tão longe a estupidez e procurar mascarar o fracasso desportivo com atos tão vergonhosos de ódio e violência? Poderá algum adepto, algum atleta, algum amante do desporto sentir orgulho neste tipo de comportamentos?

Nessa medida é natural que nos interroguemos sobre o que fazer para combater este tipo de comportamentos. O ideal seria termos uma Bola de Cristal através da qual pudéssemos prever estas condutas e antecipar medidas. Acontece que na ausência deste recurso mágico, as sugestões são de outra natureza, com destaque para a elaboração de legislação mais punitiva, o reforço do policiamento dos recintos desportivos e a recentíssima proposta do Governo de criação da autoridade administrativa independente de combate à violência no desporto.

Um amigo meu sempre disposto a ensaiar defesas por causas perdidas e um apaixonado pelo “jogo da bola” diz que o combate à violência no desporto (sobretudo no futebol) com medidas deste tipo está condenado ao insucesso. E porquê? Porque em Portugal sofremos de um défice de cultura desportiva e de um excesso de culto clubístico (o povo americano tem muitos defeitos mas no que diz respeito a cultura desportiva dão imensas lições ao mundo). E acrescenta o meu amigo: como se não bastasse o nosso défice de cultura desportiva, todos nós somos “reféns do jogo de futebol”.

Não tenho certezas sobre os meios mais eficazes no combate a estes “comportamentos desviantes”. Mas não tenhamos ilusões, o futebol não é por certo o palco exclusivo da violência no desporto. É sem dúvida o mais mediático, o que tem maior visibilidade, mas não é o único. Globalmente o desporto parece ter sido contaminado pelo vírus horrendo da violência, uma epidemia que inevitavelmente está a contribuir para a diminuição dos espectadores nos estádios e nos pavilhões desportivos. E não tenho dúvidas que é igualmente um dos fatores responsáveis pela diminuição do número de jovens que se envolve com as práticas desportivas tradicionais de um modo deliberado e apaixonado, juntando-se neste quadro de responsabilidade aos jogos eletrónicos, ao consumo excessivo de televisão e aos pais que por múltiplas razões se vão desvinculam da vida dos próprios filhos.

Argumentam alguns que há sempre uma “força misteriosa” que suporta estes comportamentos. Não sei que força será essa; o que sei é que comportamentos destes são, para mim, simplesmente intoleráveis! São atos vergonhosos e cobardes, distantes dos princípios e valores que norteiam o desporto e que fazem dele uma atividade central na preparação para a cidadania.

Pergunto: Como foi possível chegar aqui, como foi possível fechar os olhos a tanta irracionalidade e fazer descarrilar este comboio de virtudes que deve continuar a juntar na mesma carruagem a aclamação das vitórias e o respeito pelas derrotas? Entendo pois como urgente a necessidade de se iniciar uma reflexão séria sobre este tema, ou seja, refletirmos todos sobre “este apelo irresistível a comportamentos irracionais” tão querido dos Humanos em contextos desportivos (infelizmente, não só em contextos desportivos). Esta reflexão deve envolver as instâncias que controlam as práticas desportivas nacionais e internacionais, os partidos políticos, os governantes e representantes dos cidadãos. Repito, esta reflexão é urgente e inadiável para escolhermos o caminho do nosso futuro e voltarmos a afirmar o Desporto como pilar de uma sociedade com valores.

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.