Os católicos e a política

Hoje a Igreja reconhece o pluralismo político, mas não se escusa a acentuar que o mercado, sendo útil para o crescimento económico, deve ter limites.

A revista Études, dos jesuítas franceses, publicou no seu número de outubro um artigo sobre um movimento político que se intitula católico e pretende contrariar a “decadente democracia liberal”, que terá levado os Estados Unidos ao descalabro.

Nesse artigo, intitulado “Le postlibéralisme catholique aux États-Unis” e assinado por Blandine Chelini-Pont, lê-se que, até 1970, as referências cristãs na história política americana se repartiam entre a esquerda e a direita; mas que na última década essas referências infletiram claramente para a direita.

O novo movimento pretende restaurar a moral católica tradicional, nomeadamente na área sexual e familiar, visando o regresso a um Estado que atue como cristão. Trata-se se de uma posição política anti-liberal na economia e na cultura, contra o que designam de “imoralidade da sociedade americana resultante do liberalismo”.

Este movimento considera que o grande erro do catolicismo contemporâneo terá sido separar e espiritualizar a realeza de Cristo. Escreve um dos mentores do movimento que, tendo o homem um fim temporal e um fim eterno, deve ser governado por dois poderes, o temporal e o espiritual – mas o poder temporal deve subordinar-se ao poder espiritual.

O movimento coloca limites aos direitos humanos, atribuindo superioridade ao bem comum e à moral universal sobre os direitos. E chega a classificar de “totalitário” o regime liberal americano.

Antes de adiantar um comentário a estas posições, parece-me útil uma rápida revisão das relações do catolicismo com a política desde o século XVIII até à atualidade.

Trono e altar

Antes da revolução industrial a Igreja católica assumia posições políticas muito claras – defendia as monarquias absolutas. Juntava trono e altar na mesma luta.

Essa identificação com o antigo regime político iria trazer para a Igreja problemas no século XIX. Por esse motivo, a Igreja perdeu a adesão da classe operária, pois a primeira encíclica sobre a injusta situação dos trabalhadores industriais, a Rerum Novarum, apareceria apenas quase no fim do século, em 1891.

Por outro lado, a posição anti-progressista do catolicismo suscitou uma atitude crítica, por vezes violenta e injusta, por parte de intelectuais e políticos que preconizavam reformas sociais e políticas. O Papa Leão XIII tentou que os católicos franceses não pusessem em causa a República. Mas muitos deles, monárquicos, resistiram.

Do caso Dreyfus à Action Française

Um caso infeliz marcou a relação do catolicismo com a política no final do século XIX – o caso Dreyfus. Em 1894 o capitão do exército francês Alfred Dreyfus, judeu de origem alsaciana, acusado de entregar documentos secretos aos alemães, foi condenado a prisão perpétua por traição e deportado.

Levantou-se então em França uma onda de anti-semitismo, na qual participaram muitos católicos. Mas a intervenção pública de intelectuais, como Émile Zola, acusando o exército de ter condenado um inocente de maneira falsa e deliberada, acabaria por prevalecer. Em 1906 Dreyfus foi reabilitado e reintegrado no exército. Este caso deixaria fortes marcas na sociedade francesa, colocando os católicos na posição desagradável de terem defendido a condenação de Dreyfus, sem provas.

Os reflexos conservadores, visando a lei e a ordem – uma ordem consagrando a hierarquia resultante do dinheiro, que não já da linhagem mais ou menos aristocrática – prevaleceu então sobre os valores evangélicos.

Durante o caso Dreyfus surgiu em França o movimento Action Française, de tendência monárquica e anti-modernista, que procurou aproveitar politicamente as instituições católicas, considerando a religião como um útil meio para controlar o povo. O seu principal dirigente, Charles Maurras, era agnóstico, anti-democrático e anti-liberal, mas valorizava o poder social da Igreja. Em 1926 o papa Pio XI condenou a Action Française, que “se servia da Igreja sem a servir”.

Desde o século XIX que a separação do Estado e da Igreja era reclamada pela intelectualidade liberal, que lutava por um Estado laico. Em França e em Portugal essa separação tornou-se lei no início do século XX e foi sentida como uma agressão pela maioria dos católicos. Em Portugal, por exemplo, a lei da separação (de 1911) era sobretudo uma tentativa de domínio do Estado laico sobre a vida da Igreja. Hoje, porém, em França como no nosso país, a separação – se for mesmo separação e não domínio do Estado sobre a Igreja – é encarada com total naturalidade, não suscitando qualquer reserva da parte da Igreja.

Desde o século XIX que a separação do Estado e da Igreja era reclamada pela intelectualidade liberal, que lutava por um Estado laico. Em França e em Portugal essa separação tornou-se lei no início do século XX e foi sentida como uma agressão pela maioria dos católicos.

Abertura à democracia

Na sua mensagem de Natal em 1944 o Papa Pio XII considerou a democracia como o mais justo regime de governo entre os homens. Foi a primeira declaração papal nesse sentido.

Pio XII explicitou: “Manifestar a própria opinião sobre os deveres e sacrifícios que lhe são impostos, não ser obrigado a obedecer sem ter sido ouvido: eis dois direitos do cidadão que na democracia, como o próprio nome o indica, encontram sua expressão. Da solidez, da harmonia, dos bons frutos desta relação entre os cidadãos e o governo do Estado, se pode reconhecer se uma democracia é verdadeiramente sã e equilibrada”.

A emergência de partidos reclamando-se da fé cristã e da aposta na democracia marcou as décadas seguintes ao fim da II guerra mundial. Foi o tempo da “democracia cristã”. Mais tarde a Igreja, continuando a prezar a democracia, preferiu o pluralismo político e deu primazia a que os católicos se envolvessem na política, em partidos que não ofendessem a fé cristã. A Igreja, considera-se desde há décadas, não deve ter um partido.

A emergência de partidos reclamando-se da fé cristã e da aposta na democracia marcou as décadas seguintes ao fim da II guerra mundial. Foi o tempo da “democracia cristã”.

Com o Concílio Vaticano II a Igreja reconheceu a autonomia dos valores terrestres. E a doutrina social da Igreja, contestando o relativismo ético, acentua a importância dos valores, pois uma democracia sem valores converte-se facilmente em totalitarismo (Compêndio de Doutrina Social da Igreja, ed. Principia, n.º 407).

Hoje a Igreja reconhece o pluralismo político, mas não se escusa a acentuar que o mercado, sendo útil para o crescimento económico, deve ter limites. Vários Papas chamaram a atenção para esses limites. O Papa Francisco tem criticado a “economia que mata”, desafiando os economistas a encontrarem uma economia mais solidária e humana.

Um movimento anti-liberal

Voltando ao movimento católico norte-americano que a revista Études descreve. A posição conservadora dos que defendem este movimento lembra as posições dos católicos atrás referidas, quando o catolicismo pretendia impedir a evolução das sociedades para a liberdade política. Só que, nessa altura, a atitude anti-liberal parecia envolver quase toda a Igreja, e agora é uma posição muito minoritária.

Os adeptos deste “pós-liberalismo católico” apreciam a “democracia iliberal” de Viktor Orbán na Hungria, e colocam-se contra imigrantes, muçulmanos, esquerda “woke” e homossexual. Em suma, são contra a “decadente” democracia liberal, “um pouco como certos ultras da direita católica americana dos anos 1960 partiam para viverem e ensinarem na Espanha franquista” – nas palavras de Blandine Chelini-Pont, que fala também na “miragem húngara”.

No fundo, estes católicos não preferem a democracia; a sua ambição é um regime autoritário, como entre nós foi o Estado Novo de Salazar. O regime de V. Orbán não é uma verdadeira democracia. A “identidade cristã” que Orbán invoca para travar imigrantes e criticar a União Europeia é muito peculiar. Parece mais uma instrumentalização da fé cristã para benefício de políticas conservadoras.

O movimento conservador em causa tenta enquadrar-se no partido republicano dos EUA e lança apelos aos partidos populistas europeus. Tem pouco a ver com os valores evangélicos. Nada de novo.

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.