A maioria das pessoas vive numa situação de alguma estabilidade financeira e social – em Portugal, a taxa de risco de pobreza, em 2019, foi de 16.2% e o índice de Gini (medida de desigualdade desenvolvida pelo estatístico italiano Corrado Gini) de 31,2%. Há assimetrias na distribuição de riqueza, mas as situações de pobreza estão longe de ser a regra neste nosso país. Os dados do PORDATA revelam uma tendência, nos últimos anos, de diminuição de situações de pobreza. Apesar disto, continua a haver pessoas muito pobres, que vivem em condições indignas e, ao que parece, sem nenhuma atenção lhes ser dada. Afinal de contas, porque não somos tão profundamente tocados pela miséria do nosso próximo?
Recentemente, conheci o Virar a Página, uma rede de apoio alimentar, baseada em trabalho voluntário, criada para dar resposta a tantas situações de fragilidade trazidas por esta pandemia. Na Comunidade Pedro Arrupe, onde vivo, assumimos o compromisso de assegurar uma das rotas de distribuição. O contacto diário e quotidiano com pessoas em situações de enorme precariedade foi uma surpresa e uma enorme bênção, que me tem despertado para situações de pobreza concretas e próximas. O que inicialmente poderia ser uma mera assistência material, operativa e desencarnada, foi naturalmente evoluindo como meio para travar relações e conhecer histórias concretas de vidas acidentadas, limitadas pela falta de bens e de oportunidades. E não vale a pena querer romantizar este choque: é duro conhecer pessoas que viram as suas vidas tolhidas por não terem dinheiro, teto ou pão na mesa; que trabalharam desde crianças e sofreram formas de violência que, até há pouco, julgava já não haver!
Esta experiência prolongada de contacto e compromisso com pessoas em situação de pobreza fez-me questionar a minha disposição como hoje nos deixamos interpelar pelos mais desfavorecidos – e isto começa, sem dúvida, na linguagem!
Esta experiência prolongada de contacto e compromisso com pessoas em situação de pobreza fez-me questionar a disposição com que hoje nos deixamos interpelar pelos mais desfavorecidos. E isto começa, sem dúvida, na linguagem! Sabendo que a maioria das pessoas não vive em situação de pobreza ou precariedade social, o seu grupo de semelhantes, isto é, de interlocutores mais diretos, tenderá a ser integrado por pessoas não-pobres, não-marginais. Há um são mecanismo de identificação entre os que partilham circunstâncias semelhantes. Este mesmo mecanismo abre, porém, a porta ao vício se não for tornado consciente. A diminuta exposição à diferença pode iludir-nos, mais ou menos declarada, duma homogeneidade, acabando a nossa representação interna da realidade pobre de necessárias e fecundas matizes.
A velocidade e facilidade de comunicação têm um papel terminante nesta homogeneização. A marcha galopante da tecnologia deu-nos meios para manter relações pessoais que doutra forma não se manteriam, estabelecer relações comerciais até então impossíveis; permitiu-nos travar contacto com o outro lado do mundo, em tempo real. A evolução técnica é assombrosa! Por outro lado, a velocidade também trouxe uma comunicação mais fugaz, de instantes, que põe em xeque a duração necessária ao amadurecimento das relações. Comunicando mais depressa, somos incitados a comunicar numa linguagem mais fácil, que seja facilmente compreendida pelo outro, abrindo a porta às célebres bolhas comunicativas que tantos têm criticado – que não são apenas um fruto nefasto dos algoritmos!
Hoje, em tempo de distanciamentos sociais, duma certa desconfiança diante do outro, estamos permanentemente conectados e, neste fluxo de informação surgem interpelações acerca de situações trágicas de exclusão; mas isto não chega para nos mover a um gesto transformador, com impacto na vida de outros! Ver uma e outra notícia, uma e outra campanha num feed, não é suficiente, na maioria dos casos, para semear em nós a proximidade dos mais pobres.
É urgente o diálogo; é urgente a exposição física e concreta aos que, de outra forma, são invisíveis no nosso universo. O imprevisto pode ser um incómodo, que perturba os meus planos e o meu conforto, ou uma oportunidade, que traz até à minha circunstância a novidade do outro.
É urgente o diálogo; é urgente a exposição física e concreta aos que, de outra forma, são invisíveis no nosso universo. O imprevisto pode ser um incómodo, que perturba os meus planos e o meu conforto, ou uma oportunidade, que traz até à minha circunstância a novidade do outro.
A linguagem é capaz de mudar a forma como agimos e, neste caráter performativo, pode ser canal da virtude. O acolhimento e a interpelação tornam-se possíveis ao permitirmos que a linguagem se enriqueça a partir da realidade, da materialidade dos dias. Lembremos esta célebre máxima de Ortega y Gasset: “Eu sou eu e minha circunstância, e se não a salvo a ela, não me salvo a mim”. A partir desta circunstância, das pessoas concretas com quem convivo, poderei encontrar um sentido de justiça radicado nas necessidades concretas de pessoas concretas, para lá das fantasias da minha bolha.
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.